Edison Kalaf, Insper: 'As demissões mostram um ambiente contingencial de hostilidade ao investimento em inovação'
Empresas do segmento dão a entender que farão novo ajuste em breve.
Demissões das empresas de tecnologia são efeito retardado do pior ano nas bolsas para o setor desde 2008. (Foto: Unsplash)
Amazon, Microsoft, Meta (Facebook), Alphabet (Google), IBM, Salesforce, PayPal, SAP, Spotify, Twitter. Com a significativa exceção da Apple, é difícil achar alguma grande empresa de tecnologia que não tenha anunciado demissões nos últimos três meses. Algumas, como a Meta, que demitiu 11.000 pessoas em novembro de 2022 (13% de sua força de trabalho), dão a entender que farão novo ajuste em breve.
De acordo com a Xobin, uma multinacional indiana que vende software para recrutamento de funcionários, cerca de mil empresas de tecnologia demitiram no ano passado mais de 154.000 funcionários. No início deste ano, o ritmo de dispensas aumentou, com 220 companhias do setor demitindo outros 68.000 trabalhadores.
As demissões são o efeito retardado do pior ano nas bolsas para a indústria de tecnologia desde a crise financeira de 2008. Contando apenas os cinco gigantes do setor — Apple, Amazon, Alphabet, Microsoft e Meta —, a desvalorização atingiu a bagatela de 3,9 trilhões de dólares. Em alguns subsetores, como o de streaming, os aplicativos de transporte e o que a revista The Economist chama de creepers (empresas como o Facebook, que espionam nossa atividade online para vender anúncios específicos), o valor de mercado chegou a cair em dois terços.
“As demissões mostram um ambiente contingencial de hostilidade ao investimento em inovação”, diz Edison Kalaf, professor de tecnologia da informação e transformação digital do Insper. A ênfase aqui é no termo “contingencial”. Quer dizer: “Isso tende a melhorar no futuro, quando os mercados estiverem livres de inflação” e os juros forem reduzidos novamente.
A crise não é exclusividade das empresas de tecnologia, mas no mercado de capitais elas tendem a ser mais afetadas. Em parte, porque subiram muito nos últimos anos. O maior motivo, no entanto, é que elas costumam ser avaliadas de forma diferente — com uma parte maior de subjetividade.
“A Apple vale cerca de 2,35 trilhões de dólares no mercado de capitais”, diz Kalaf. “O seu valor contábil, porém, juntando os prédios, mobília, contrato das pessoas, cálculo do valor da marca… é de apenas 70 bilhões de dólares.” Essa diferença toda está calcada na subjetividade. “Os investidores esperam ganhar com inovações.”
É comum que o valor contábil de uma empresa seja diferente do valor de mercado. Mas não com uma distância assim tão grande. Isso ocorre em especial no setor de tecnologia porque ele lida mais especificamente com expectativas de ruptura, inovação. Isso pode causar algumas distorções, como a Tesla valer mais do que a GM e a Toyota. Ou, no Brasil, o Nubank ter chegado a valer mais que o Itaú Unibanco (hoje seu valor de mercado é cerca de metade do rival).
Por surfar mais na onda das expectativas, é normal que as quedas sejam maiores quando o humor dos investidores muda.
Apertem os cintos, o dinheiro sumiu
Não são só as expectativas que minguaram. O dinheiro disponível também. De uma forma ou de outra, todas as empresas dependem de crédito para financiar projetos, renovação etc. Quando os juros sobem, numa estratégia dos bancos centrais para conter a inflação, as companhias sofrem de duas formas: fica mais difícil atrair investimentos (porque concorrem com os títulos do governo, que estão pagando juros mais altos) e suas dívidas ficam mais caras (porque elas têm de pagar os juros mais altos).
Se isso acontece para o mundo corporativo em geral, para o setor tecnológico é pior. Muitas empresas são extremamente dependentes dos investidores para financiar operações que ainda não dão lucro a contento. É o que se costuma chamar de “comprar crescimento”: investir para dominar um mercado, estabelecer uma nova tecnologia, ganhar escala para, aí sim, dar lucro.
Com o dinheiro mais caro, essa lógica treme um tanto. “Quando a inflação e, em seguida, as taxas de juros aumentaram, essas companhias — que estavam fazendo promessas de longo prazo à expensa dos lucros de curto prazo — levaram um chacoalhão”, escreveu o jornalista Derek Thompson em artigo na revista The Atlantic.
“Quando o mercado sofre uma incerteza, é natural que empresas que estavam nadando em investimentos sofram”, diz Kalaf.
Além disso, há uma espécie de correção em curso. Durante a pandemia, as empresas de tecnologia “bombaram”. Reuniões por videoconferência, transporte de refeições, consumo de filmes e séries por streaming… Estabeleceu-se um discurso segundo o qual essas mudanças eram “acelerações”, que as tendências já estavam todas aí e que estávamos apenas encurtando o prazo de sua adoção plena.
Mas, como disse Thompson na Atlantic, talvez a pandemia não tenha provocado uma aceleração, e sim uma bolha.
Grande parte das empresas de tecnologia, entretanto, acreditou que a demanda inflada pela pandemia estaria aí para todo o sempre — e tratou de se preparar para ela. Nesse período a Amazon e a Meta dobraram sua folha de pagamentos; a Microsoft e a Alphabet aumentaram-na em 50%. Uma reportagem da Business Insider de fevereiro mostrou que a Amazon mais do que dobrou o seu salário base, de 160.000 dólares para 350.000 dólares anuais. A Apple, mais contida, incrementou seu pessoal em 20% (o que explica não ter entrado na onda de demissões, pelo menos até agora).
A volta às atividades presenciais pegou várias empresas de calças compridas demais. E logo em seguida houve a guerra na Ucrânia, que provocou escassez de suprimentos e deu impulso à inflação, cujo combate elevou juros e cortou a capacidade de investimentos.
Tu demites, ele demite… eu demito
Não é que as gigantes de tecnologia estejam na pindaíba. Longe disso. Em seu relatório do trimestre que terminou em dezembro, a Microsoft reportou lucros de 16 bilhões de dólares. A Meta, mesmo com uma redução de lucros de 52% em relação ao ano passado, ainda embolsou 4,4 bilhões de dólares. A Amazon, 3 bilhões de dólares.
Ainda assim, decidiram fazer ajustes. Trata-se, principalmente, de um recado aos investidores. Projetos futuristas foram reduzidos ou eliminados, equipes enxugadas. Há indícios de que os salários estejam sendo redimensionados, assim como alguns benefícios mais pomposos (como o serviço gratuito de lavanderia ou os lanchinhos).
O discurso padrão foi entoado por Mark Zuckerberg, o executivo-chefe da Meta, ao apelidar 2023 de “o ano da eficiência” (palavra que repetiu mais de 30 vezes em uma reunião com analistas no início de fevereiro). A promessa: gastar menos em infraestrutura, cortar camadas médias de gerentes, identificar e suspender projetos que não estejam dando resultados.
Sundar Pichai, da Alphabet, Tim Cook, da Apple, e Andy Jassy, da Amazon, seguiram a mesma linha, com garantias de “investir responsavelmente”, “agir de forma refletida e deliberada” e “estancar custos”.
É neste contexto que se explicam as demissões. Elas ajudam a passar uma mensagem aos investidores. E são resultado também de uma espécie de contágio. Como afirmou Jeffrey Pfeffer, professor de comportamento organizacional da Universidade Stanford, ao Stanford News: “Havia uma bolha nas avaliações? Sem dúvida. A Meta contratou gente demais? Provavelmente. Mas é por isso que as pessoas estão sendo demitidas? Claro que não. Essas companhias estão todas ganhando dinheiro. Elas estão demitindo porque as outras companhias estão fazendo isso.”
É hora de investir?
Se a situação é contingencial, a grande questão é: a desvalorização já chegou ao seu limite? Esta é a pergunta de — até os mais recentes cálculos — cerca de 4 trilhões de dólares. “Se a gente soubesse quando é o fundo do poço, comprava ações na baixa para vender na alta”, diz Kalaf, do Insper.
O fato de que o Fed (o banco central americano) tenha desacelerado as altas na taxa de juros é sinal de que a inflação pode estar sendo controlada e que o pior já passou. Já há quem defenda o investimento no setor. Em entrevista ao site Investment Executive, em meados de fevereiro, Jonathan Curtis, vice-presidente do Franklin Equity Group, da Califórnia, afirmou: “Para investidores de longo prazo, o perfil risco/retorno do setor é provavelmente o melhor que já se viu em muitos anos”.
O site da Nasdaq, a bolsa eletrônica de Nova York focada em tecnologia, lembra que apenas uma vez em seus 37 anos de existência o índice Nasdaq 100 teve perdas por dois anos seguidos e que a recuperação no ano seguinte levou a ganhos de 52% em média.
Contudo, os sinais são contraditórios: em fevereiro, o Google e o Facebook anunciaram declínio na receita de publicidade, a Amazon relatou diminuição nas vendas e receita menor no negócio de computação nas nuvens (tendência reforçada pela Microsoft), a Apple teve a maior queda de vendas de iPhone num Natal desde 2018 (embora isso possa ter sido causado por problemas de produção na China, graças aos lockdowns impostos para combater a covid).
Para além do mercado financeiro, pode-se argumentar que a tecnologia sequer esteja em crise. Claro, muitos projetos serão suspensos ou desacelerados, mas isso talvez se encaixe melhor no termo “correção de rumo” do que como um baque. “No longo prazo, a tecnologia se mantém forte”, diz Kalaf. “Todas as empresas estão adotando inteligência artificial, incrementando a robotização, investindo em sistemas.”
Uma prova disso é que os técnicos demitidos pelas grandes empresas do setor em geral não ficaram no limbo. Uma pesquisa da empresa de recrutamentos ZipRecruiter feita em novembro nos Estados Unidos apontou que 80% dos técnicos mandados embora arranjaram outra ocupação em menos de três meses. Metade desses ficaram empregados já no primeiro mês.
De acordo com a pesquisa da Xobin citada mais acima, quase 600 companhias de tecnologia de menor porte, do mundo inteiro, estão contratando pessoas, aproveitando os desligamentos promovidos pelas grandes. Isso sem falar nas empresas de outros setores, porque de certa forma todas as empresas hoje são empresas de tecnologia, ou pelo menos precisam de uma divisão especializada forte.
Numa atividade volátil por excelência, as empresas individualmente convivem com o eterno risco de perder a hegemonia. O Instagram ia muito bem, obrigado, até que surgiu um TikTok. E o TikTok navegava tranquilo até surgir a ameaça de ser banido nos Estados Unidos e na Europa por suspeitas de servir como ferramenta de espionagem para o governo chinês.
O setor como um todo, porém, deve seguir firme e forte. “A consultoria McKinsey cunhou há algum tempo o termo skill shift, mudança de habilidades”, lembra Kalaf. “Refere-se à troca do trabalho braçal pelo intelectual. Isso existe desde o tempo dos faraós, mas entre 2016 e 2030 o processo deve sofrer uma aceleração brutal.”
De acordo com Thompson, da Atlantic, a indústria está tendo uma crise de meia-idade. “Os problemas de agora não vão permanecer para sempre”, escreveu. “Mais provavelmente, estamos no intervalo entre duas eras tecnológicas.”