Ugo di Pace: 'Dediquei minha vida à arte'
Arquiteto italiano conta por que a qualidade é o princípio de tudo, e a arte, o sentido da vida.
Arquiteto italiano conta por que a qualidade é o princípio de tudo, e a arte, o sentido da vida.
O arquiteto Ugo di Pace não gosta mais de dar entrevistas. Já perdeu as contas de quantas vezes contou sobre quantos projetos fez: mais de mil, espalhados pelo mundo, de São Paulo a Tel Aviv, passando por Nova York, Paris e Dubai. Acha que já não tem mais o que contar, em- bora, em seguida, conte mais uma de suas histórias. Não há entrevista que dê cabo de tudo o que viveu.
De Nápoles, onde nasceu, há quase um século, até aquela tarde de inverno ameno na mansão do Morumbi, onde acabara de almoçar com a ex-mulher Vera – a quem sempre se refere como atual e definitiva – e a filha, a arquiteta Maria di Pace, a vida segue sem pressa, a passos curtos, mas firmes. A bengala com cabo de marfim, do século XIX, parece servir apenas de adorno para compor o personagem forja- do na elegância. Ugo di Pace nem pensa em parar.
Não faz mais projetos de arquitetura, nem de interiores, mas segue trabalhando. Agora organiza leilões. E usa seu bem maior, o olho, sua lupa orgânica, polida pelo tempo, por trás do inseparável óculos de tarta- ruga, que só ajudam a enxergar melhor o que ele já registrou com o indefectível faro esteta. Só vão para o catálogo e para o martelo, coisas que ele até mesmo compraria de volta. Ugo é obcecado por qualidade. Reflete e teoriza sobre o tema: “Se pudesse resumir minha vida em uma palavra seria qualidade”. Um rigor usado para tudo.
Pessoas inclusive. É assim desde a juventude, quando chegou ao Brasil em 1948 com 30 mil dólares no bolso, oferecidos pelo pai, e viveu la dolce vita. Morou no Copacabana Palace, dormiu na cama que escolheu, com as mulheres que quis, até ficar sem um tostão. Aos 96 anos, ele não se queixa de quase nada, exceto da perda do movimento no braço direito, que o impede de enrolar o espaguete no garfo, hábito que os italianos aprendem na infância, e os de Nápoles já nascem sabendo.
Conta, sem reclamar, que a idade lhe surrupiou 15 centímetros da altura, e a maioria das roupas também não lhe cabe mais porque pesa 20 quilos a menos que os 77 quilos dos anos dourados em que frequentava o Gallery, a casa noturna mais icônica de São Paulo, projetada por ele nos anos 1980.
“O Victor Oliva, um dos donos do Gallery, diz que você aprende muitas coisas, mas ser elegante, ou você é, ou só na próxima encarnação”, afirma. “Não falo em dinheiro porque acho de mau gosto”, conclui, e em seguida nos leva para conhecer seu jardim, uma exuberante e selvagem floresta urbana cercada de fontes e obras de Rothko e Portinari.
Leia a conversa com um homem que nem de longe parece cansado de viver, nem de contar o que viveu.
Da onde vem o seu senso estético?
De Nápoles. Foi a cidade mais incrível da Europa. No século XVIII, Nápoles era mais importante que Paris. Todos os grandes filósofos, artistas vinham para Nápoles na corte dos Bourbons para fazer exposições. E do ponto de vista da elegância também. Os grandes juristas italianos eram todos do Sul. Então, ter nascido naquela cidade é ter tido o privilégio de Deus ter me dado essa felicida- de. Desde criança fui um sujeito que se interessou pelas coisas de arte, estudei com os mais importantes caras do mundo. Dediquei a minha vida à arte. A arte é fundamental. Não só a arte em si, mas as coisas em torno da arte. Os meus projetos, sem as obras de arte, não seriam válidos. Se você entra numa casa, num apartamento composto por obras de arte, sem saber porquê, você diz: que bonito!
É a linguagem subconsciente da obra de arte.
O sr. sempre fez suas roupas com alfaiates em Nápoles. E hoje em dia, onde compra roupas?
Não compro mais. Primeiro de tudo, tenho um guarda-roupa muito bonito feito pelo mais incrível alfaiate do mundo em Nápoles, o Lubinatti. Gianni Agnelli, dono da Fiat, considerado um dos homens mais elegantes, fazia roupa em Nápoles. Hoje em dia, nada me serve mais. Eu pesava 75 quilos e hoje, 57. Tinha 1,75m de altura, diminuí 15 centímetros. Então, as roupas estão no meu guarda-roupa.
E o que não pode faltar no guarda-roupa de um homem elegante?
Não é importante o que a gente tem, mas como a gente usa o que tem. Isso é fundamental. Um smoking, dois ternos e os paletós. Uma camisa azul-clara, uma calça azul-marinho...
Para Ugo di Pace, a elegância não está naquilo que se veste, mas na maneira de vestir.
Esse seu sapato é italiano?
É do Busso, que é o melhor sapateiro do Brasil.
Quem é o decorador no mundo que o sr. mais admira?
Germano Mariutti. Nós fomos sócios durante sete ou oito anos. Mas tivemos que desfazer a socieda- de porque a gente era muito bom, tanto um quanto o outro. Isso causava uma coisa meio esquisita, porque quem nos procurava, dizia: “Vamos procurar quem?” A gente desfez a sociedade para continuar o livro até ele morrer, há uns anos atrás. Foi um grande artista, realmente um talento enorme.
O que ainda lhe provoca interesse?
Obra de arte. Estou começando uma nova coleção. Todos os dias, na hora do almoço, sento para olhar meus quadros. Você não sabe o quanto eu curto e fico feliz ao olhar para esses quadros.. Qualquer pergunta que você me faça, a coisa que mais importa é qualidade e o resto é zero.
O sr. foi amigo de Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi. Qual a importância da Lina para o Brasil?
Imensa. Ela foi a mais importante arquiteta que o Brasil já teve. Pelo Sesc, pelo Masp. Éramos muito amigos. Ela me convidava para almoçar e cozinhava para mim. É de uma genialidade incrível. Arquiteto faz coisas diferentes, mas, coisas geniais, é a Lina.
Mais do que Niemeyer?
Niemeyer é um gênio, Lina é um gênio, mas entre os dois, prefiro a Lina.
Qual o significado do seu amigo Pietro Maria Bardi para a arte brasileira?
O Bardi foi uma das personalidades mais importantes que ouvi falar no mundo. Numa viagem a Londres, fomos à National Gallery. Chegamos e o Bardi disse: “Queria falar com o sr. McLaren”, que era o presidente. O porteiro riu: “Demora três meses uma entrevista com ele”. Bardi retrucou: “Faz assim, avisa que o Pietro Maria Bardi quer falar com ele.” Cinco minutos depois, McLaren desceu na portaria e nos levou até sua sala.
Como era a amizade de vocês?
Nós tivemos uma galeria em Roma, o Estúdio A, que fez um sucesso nos anos 1960. Inauguramos com uma exposição de Renoir. Nós viaja- mos muito para comprar coleções extraordi- nárias que a gente vendia. Certa vez, em Barce- lona, o Bardi me disse: “Hoje a noite vamos fazer um programa diferente”. Ele me disse: “Vou apresentar umas primas da minha família que moram aí.” À noite, pegamos um carro e chega- mos numa casa do século XVIII com seis ou sete degraus, em cima da escadaria, surge uma senhora de 80 anos, maravilhosa, de uma ele- gância que você não faz ideia. Entramos na casa, os copeiros começaram a servir champanhe. A uma certa altura, ela mandou vir as meninas “primas”, belíssimas. Naquele momento, entendi. Não eram primas coisa nenhuma, era o mais famoso bordel. Esse era o Bardi.
Como entende hoje a arte, arquitetura e o design brasileiro?
Detesto as coisas de moda. O design brasileiro é muito moda. Fazem uma cadeira com uma perna e todo mundo: “Ah, é uma novidade.” Só que numa cadeira de uma perna você não senta, porque cai.
Sobre o universo feminino, o que torna uma mulher interessante?
Outro dia vi um vestido numa loja por R$ 40 mil reais. Eu disse: “Mas como?!” A minha mulher, Vera, na minha opinião, é uma das mulheres mais elegantes que já conheci na vida. E ela é uma das grandes fortunas do Brasil, mas compra em liquidação. Se você visse a Vera se vestir, é de um chiquê. Em Nova York tem uns lugares aonde ela vai e compra roupa por US$ 500. Tive quatro mulheres. Vim para o Brasil porque meu amigo, Rudi Crespi, que era o mais famoso “playboy” no mundo inteiro, dizia: “No Brasil tem as mulheres mais bonitas do mundo.” Eu vim com 20 anos, cheguei em 1948. Fui morar no Copacabana Palace, meu pai me deu, em 1948, US$ 30 mil. Era uma fortuna! Fiquei lá e conheci uma mulher ex- traordinária , Gabriela Besanzoni Lage, mulher do Henrique Lage, donos do Palácio Lage, no Parque Lage no Rio. Ela dava festas astronômicas e todos os artistas do mundo vinham nos jantares dela. Eu frequentei a casa dela. Comprei um carro Studbacker. Gastava dinheiro à toa, até que aca- bou e fiquei com vergonha de voltar para a Itália.
E o que fez quando ficou sem dinheiro?
Fui morar com Vitório Robis, um grande artista, que morava na rua Anita Garibaldi. Em frente à casa dele, tinha a loja dele. Fiquei um ano mo- rando com ele. Mas antes, fiquei uns meses sem saber onde dormir, naquela época tinha muito pouco carro na rua, o carro não fechava. Então, às 3h da manhã, abria a porta do carro e dor- mia, levantava 6h da manhã e ia para a praia. Tinha vendido todo o meu guarda-roupa para um amigo, um menino pobre, que trabalhava na construção de um prédio. Ele me comprou todo o guarda-roupa, eu fiquei com uma camisa e uma calça. Foi o período mais feliz da minha vida. Quando tinha um dinheirinho, tomava uma média, pão com manteiga por R$ 0,20.
E a que o sr. atribuía essa felicidade?
Aprendi a viver. Teve um tempo horrível em que fui dormir nesses lugares onde o quarto tem dez pessoas, onde havia delinquentes. Foi um período em que aprendi como é a vida.
Seu crescimento profissional se deu a partir de quando?
Depois voltei para a Itália e me formei em arte no Instituto de Belliard em Nápoles. Estudei com gente maravilhosa e voltei para o Brasil.
E no Brasil, voltou aos tempos áureos?
Houve uma época em que eu jantava três vezes por noite, com mulheres diferentes. Essas são as coisas engraçadas da minha vida. Eu era ami- go íntimo do Wallinho Simonsen (Mário Wallace Simonsen), eles eram mais ricos que os Mataraz- zo. Tinham um castelo em Londres, ele ganhou, naquela época, o Campeonato Mundial de Polo, foi receber da rainha da Inglaterra a taça. Eu estava lá.
Sua vida é uma aventura. Acha os ricos de antigamente mais interessantes que os de hoje?
Muito mais! Mas por ironia do destino, nos anos de 1977, 78, eles perderam tudo e o Wallinho virou meu empregado no meu escritório. Vejam como é a vida.
E por falar na vida, qual o sentido da vida para o sr.?
No meu entendimento, é essa longevidade tão importante. Meu irmão Vitório morreu com 106 anos. Meu pai com 95. Então, é de família. Eu, graças a Deus, tenho só três ou quatro coisas que me incomodam fisicamente. Não tenho mais mo- vimento nesse braço (o direito) porque quebrou. Então, para assinar um cheque é difícil. Gosto de comer espaguete e não posso mais, porque preci- sa virar o garfo e, com o outro braço, não sei fazer.
O sr. acredita em vida após a morte?
Não sei. Com meu irmão, que morreu há 16 anos, tínhamos um contato gostoso, e quando falávamos disso, ele respondia: “Fica quieto. Quando eu for para lá, vou te contar.” Não me contou nada.
Paulo Mendes da Rocha dizia que, para ele, não há morte porque só existe a vida. E para o sr.?
De certo modo ele tinha razão. Para todos nós, a vida é. A morte, não sabemos o que é.
O sr. acredita em Deus?
Acredito em Deus, mas sou um sujeito meio esquisito. Porque acredito em outras coisas também. Mas isso já seria outra longa história.