O irmão Campana
O designer Humberto Campana diz que continuará trabalhando e honrando o nome do irmão, Fernando, que morreu há cinco meses. “Um vazio ficou. Fernando era poesia pura. Não consigo superar”, conta, emocionado. Ele lançou a última coleção feita pelos dois e vai se dedicar à conclusão de um parque educativo, em que o design é ferramenta de inclusão.
Designer Humberto Campana.
Em 17 de março, o designer Humberto Piva Campana fez 70 anos. De perto, parece ter apenas 45, e olhe lá. Especialmente quando sorri. Foi o primeiro aniversário em 61 anos sem o irmão Fernando. Os dois eram tão ligados, que muita gente achava que os Irmãos Campana fossem gêmeos, ou apenas um. Fernando era oito anos mais novo, mas a diferença nunca atrapalhou a parceria quando os dois, crianças, fabricavam os próprios brinquedos, ou uma casa na árvore, em Brotas, interior de São Paulo, onde cresceram os dois mais expressivos nomes do design brasileiro.
Fernando morreu em 16 de novembro do ano passado. A última coleção criada pelos dois em colaboração com a Firma Casa, se chama Ripas. São bufês feitos com materiais que contrastam tanto pela composição como pela plasticidade. É assim sempre: quando se acha que já se viu tudo, vêm os irmãos Campana e surpreendem de novo. O que ninguém esperava é que eles agora, de verdade, fossem ser um só. A dor da perda, mas também a vontade de seguir em frente podem ser resumidas num trecho da canção Fotografia, de Tom Jobim, a preferida de Humberto. Tem que ser na voz de Elis Regina, pisciana como ele, também de 17 de março. Assim: “Parece que este bar. Já vai fechar. E há sempre uma canção para contar. Aquela velha história de um desejo. Que todas as canções têm para contar...”
Coleção foi pensada para criar um encontro da geometria com a anarquia.
Como foi a coleção, em parceria com a Firma Casa, apresentada recentemente na SP Arte? Essa última canção...
Essa coleção foi pensada para criar um encontro da geometria com a anarquia. Gosto muito dela porque pudemos trabalhar diferentes linguagens a partir de uma mesma estrutura de madeira, que dialoga com bases naturais como a pedra e o metal. Esse jogo entre peso e densidade, luz e opacidade, revela personalidades diferentes para as peças. Como um personagem trocando de figurino, transitando entre o formal e o casual, ou o aéreo e o terreno.
Por que essa proposta?
Depois de quarenta anos de estrada, é bom experimentar outros universos. Foi muito intuitivo. Nós contamos histórias de experiências, de lugares onde estivemos. Sempre odiei coisas geométricas. Odeio matemática. Na escola era bom em tudo, menos em matemática. Sempre repetia de ano, por isso não fiz arquitetura. Sou advogado (Humberto concluiu bacharelado em Direito na Faculdade
de Direito do Largo São Francisco, em 1977).
Foi a última coleção feita com o Fernando?
Foi a última. Fernando era poesia pura. (pausa)
O que muda no estúdio com a partida do Fernando?
(Um breve silêncio pausa nossa conversa. A voz volta, embargada). O vazio ficou. Não consigo superar. Sinto falta da voz dele. Ele entrando no estúdio, falando alguma coisa engraçada, ele era muito brincalhão. O resto, o trabalho, continua tudo igual. Estou muito criativo, trabalhando muito, quero honrar o nome dele.
Vocês tinham algum projeto juntos que não foi concluído?
Herdamos um sítio em Brotas e decidimos fazer um projeto social. Era um sonho dele. Ajudar a comunidade. Vai se chamar Parque Campana. Um lugar com programas educacionais usando o design como ferramenta de transformação social. Vou levar adiante. Achei um mecanismo de conviver com a ausência.
Como lida com a ausência dele?
Acendo uma vela todos os dias. Peço que ilumine a alma dele. É uma forma de me conectar e sinto a energia dele. Há três semanas tive um sonho com o meu irmão. Ele sempre quis fazer alguma coisa usando refugo de alumínio. Mas nunca fez. No sonho eu via um globo de alumínio. Ele queria ser astronauta. Eu acordei e anotei rapidamente, para não e squecer. Ele queria fazer e vou fazer um planeta de alumínio. Vai se chamar Fernando.
'A gente veio com uma missão de fazer um trabalho bonito, respeitado'.
O que isso tudo quer dizer para você?
Tudo estava escrito. A gente veio com uma missão de fazer um trabalho bonito, respeitado. A gente tinha que fazer essa história. Fazer isso no Brasil, traduzir esse amor. Vejo o nosso trabalho como uma missão.
O seu trabalho sem o Fernando segue, como homenagem a ele... Existe uma peça que você considera sua obra-prima?
Ah, isso vai mudando. Mas posso citar a cadeira da série Detonado, feita para uma exposição em Nova York. Porque nasceu de um namoro longo. Por dois ou três anos eu passava por uma esquina
de Santa Cecília, onde eu moro, e havia um senhor que ficava ali e restaurava aquelas cadeiras Thonet. Ele deixava os pedaços expostos. Eu achava aquilo tão bonito e pensava que precisava
fazer alguma coisa com isso. A ideia de retramar aquilo é muito atual, resignificar material.
Quem é o seu ídolo do design mundial? Quem você admira?
Existem alguns, mas um deles é o Ingo Maurer (1932-2019). Achava ele genial, porque jutava tecnologia e poesia. Eu sempre quis ser ele (risos). Nos conhecemos em 1998 quando expusemos ao mesmo tempo no MoMA, em Nova York. Foi uma exposição organizada pela curadora Paola Antonelli em que a proposta era juntar o high-tech e o low-tech. Nós éramos o low.
E você disse para o Ingo Maurer que queria ser ele?
Não. Mas ele foi muito generoso. Tive medo que ele fosse frio, aquela coisa alemã, mas ele foi muito atencioso, gentil.
Generoso é você, Humberto... Mas, diga, o brasileiro é bom de design?
Muito. Veja só o Modernismo brasileiro, é incrível. O Brasil é muito valorizado pelo design. Tem muita gente fazendo coisa boa, mas desisti de ser uma enciclopédia. Não consigo mais acompanhar tantos nomes. Mas tem alguns que presto atenção: o Guilherme Wentz, a Carol Gay, o Estudiobola. Tem poesia e rigor.
Qual é o grande desafio dos novos designers hoje no mundo?
Criar o que tenha valor e não seja descartável. Que resgate tradições que estão desaparecendo, que respeite materiais. Isso é urgente. O que vai fazer com essa peça? Ou é só mais uma
peça?! O feito à mão, não à máquina. O consumidor hoje é mais exigente. Quer saber de onde vem, se ajuda alguma comunidade...
A inteligência artificial pode mudar os caminhos da criação de objetos de design?
Ela pode ajudar muito a desenhar muitos projetos, na descoberta de novos materiais. Mas há que saber fazer. Vai ajudar, mas também pode ficar tudo muito pasteurizado, muito “trick”. Não tem autor, não tem uma mente. Fora o desemprego. A falta de alma me deixa atônito, me dá medo. A inteligência artificial pode projetar um bonito objeto e também uma bomba. Tem que ter um código moral, porque pode ser muito perigoso. pode ser bem-feito, mas não tem afeto.