Na Bahia que é meu lugar
Carlinhos Brown, cujos 60 anos de vida serão contados por uma série documental na HBO, prega o Carnaval e a alegria brasileira contra a violência.
Brown, a africanidade sob a bênção do candomblé.
Quando despertou para o mundo da música, há cinco décadas, Antônio Carlos Santos de Freitas talvez desejasse ser mais dançarino que instrumentista e compositor. Isto porque, nos anos 1970 de sua adolescência baiana, vigorava James Brown, o músico que, muito além de cantar e compor, comandava o espetáculo com seus passos impossíveis.
Dono de uma estética só dele, traduzida em cabelos para o alto, ternos brilhosos e camisas de golas grandes, James Brown lutou pela causa dos negros e pobres, o que levou o jovem Antônio Carlos a considerar para si a mesma possibilidade. Por que não poderia ele, nascido na comunidade do Candeal Pequeno de Brotas, um quilombo de resistência africana cravado no coração de Salvador, fazer na Bahia algo parecido com o que o músico dos Estados Unidos promovia pelos seus?
Aquele que a arte conheceria pelo nome de Carlinhos Brown não entendia nada do que o Brown estadunidense cantava, mas compreendia seu comportamento, a forma de dançar se arrastando, que pareciam evocar um drible social nos problemas e no preconceito. No início, com figurino exagerado e colorido, penteado black power e óculos escuros, o menino baiano queria ser pop, ser “brau”.
Mas não tardou para que a africanidade lhe chegasse, assumida. De calças cortadas, como as usavam os escravizados no Brasil, cabelo rastafári, guia de candomblé, colares imensos como os do cineasta Spike Lee, ele rejeitou rótulos para temperar os ritmos brasileiros com uma sonoridade inusual. O músico Carlinhos Brown queria transformar a vida. E assim fez, a começar pelo Candeal de sua origem, antes um local repleto de vegetação isolado da cidade e, depois dele, conhecido por seus inúmeros projetos sociais dedicados à juventude. As principais inspirações do instrumentista para atender àqueles como ele foram os ensinamentos dos mais velhos, as sonoridades e as oralidades do candomblé.
Brown em ensaio da banda Timbalada.
Ele que também pinta quadros para ser “ouvido” foi o primeiro músico brasileiro a fazer parte da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, o Oscar, e a receber os títulos de Embaixador Ibero-Americano para a Cultura, ambos em 2018. Em maio de 2022, virou o primeiro Embaixador da Justiça Restaurativa da Bahia. Integrante dos programas The Voice Brasil e The Voice Kids, continua acantar e a compor, sem jamais se esquecer de que deve inspirar, na fala e na ação, os jovens espelhados nele.
Às vezes parece fazer isso por caminhos indiretos, como aquele que assumiu em 8 de setembro de 2022, ao declarar no Twitter, sobre a morte da rainha britânica Elizabeth II, que “a serenidade e a lucidez de Vossa Majestade” condiziam “com a nobreza do viver”. Se se trata de duas majestades ela com sua coroa, ele, com um turbante sobre o qual, vez ou outra, cabe um diamante —, como não iriam se entender? Ele está feliz que o mundo o ouça tão bem, que Londres o prestigie e que ele vá fazer o Carnaval no Caribe, como um embaixador cultural.
Brown, que em 23 de novembro completou 60 anos de idade, pleno de estreias e renascimentos, não anda atrás de polêmica. Ele quer obter harmonia por meio da potência carnavalesca. O músico conversou com a Robb Report pelo telefone, durante uma hora, de sua casa na Costa do Sauípe, na Bahia. Gentil, ele falou devagar e seriamente sobre assuntos como o papel educativo e pacificador da música. Cercado por três integrantes de sua assessoria, que às vezes se manifestavam de modo a interagir com a reportagem, jamais a impedir qualquer tema aflorado à conversa, lembrou-se de dar ênfase ao talento do filho Chico, que ele acredita ser o melhor músico em atividade no Brasil.
Para compreender Carlinhos Brown, é preciso morar na sua filosofia, mergulhar na herança africana e recolher suas bênçãos. E é isto que pretende fazer uma série documental com lançamento em 2024, pela HBO. Em cinco episódios, ela vai mostrar a trajetória do artista e a história de sua família. A produção, assinada pela Giros Filmes, deve começar a ser gravada no início de 2023.
Pelas ruas do Candeal, em ritual que ecoa a sonoridade carnavalesca.
Com o título provisório de Candeal, terá direção de Maurício Magalhães, CEO da Giros. A seguir, alguns dos tópicos desenvolvidos pelo artista em entrevista à Robb Report Brasil.
Fazer 60 anos e rever o que passou
“Rapaz, o bacana é ter o que fazer. A gente só não tem o que fazer quando a gente morre. É bom fazer 60 anos! Rever o que passou. O meu tempo foi o do pivete. Ser pivete, então, anunciava uma morte jovem. Como vou voltar para casa se não tenho o que comer, se minha situação não é boa? Todas as famílias passavam por uma dificuldade enorme no meu começo. Na minha adolescência eu trabalhava enquanto vivia a música. Saído de uma área rural, chegava aos bairros de classe média da Bahia, onde havia bandas de rock. Eu compus A Namorada na porta da escola, para defender uma menina maravilhosa. Muito semialfabetizado, fui trabalhar em um centro de pesquisas e desenvolvimento da Bahia, como office boy. Era um lugar onde rolava muita poesia. Eu era menor, ganhava meio salário e adorava tudo. Eu me lembro de um ano em que eles compraram instrumentos musicais e uma educadora japonesa me chamou de Brown pela primeira vez, antes mesmo de adotarem o nome no Candeal. Todos eram muito educadores. Tudo o que falava errado me corrigiam, eu aprendi bastante. Minha história, que vai ser detalhada na série documental, é bem brasileira e serve para contar a história do povo. A diversidade no Brasil é recente. O país é novo, precisamos nos compreender ainda muito. A gente tem o tabuleiro do xadrez político, sobretudo na América Latina, tem uma missão, ele é o ritmo. O ritmo é política o tempo inteiro. Tocar percussão foi o primeiro ativismo do mundo. Busquei a minha ancestralidade, não apenas aquela que veio da África. Meu trisavô, Augusto Teixeira de Freitas, por exemplo, escreveu 4.900 esboços para o Código Civil brasileiro. Meu maior presente dos 60 anos é ter o reconhecimento da memória desse avô. Eu quero que ele seja reconhecido como Rui Barbosa é, um superjurista, superpensador. Como jurisconsulto do Brasil, ele conseguiu o reconhecimento internacional, mesmo sendo pouco falado aqui. Eu o considero o primeiro escritor do Código Civil brasileiro, a pedido de dom Pedro II. Ele se recusou a colocar os negros como escravos no Código.”
Incentivador de talentos, durante apresentação de festival de percussão em Salvador.
Oralidade, a Lei do Brasil
“Eu vivo o Brasil! Eu amo isso aqui! É importante que o mundo saiba que não estamos parados. Esta sociedade conversa. Fazemos churrasco um na casa do outro. Nós comemos, nós dividimos copos no bar, saímos atrás do trio elétrico durante o Carnaval, entende? Podemos sacudir isso de uma forma diferente, porque o mundo espera essa resposta de nós, uma resposta de alegria, de que a gente esteja junto. Tudo é de todo mundo, então todo mundo tem de cuidar bem. O mundo inteiro tem de cuidar da Amazônia? Sim, se é importante para o ser humano e para o mundo! Falo isso aqui, falo em Londres, mas o que eu não conseguir dizer, a música dirá, do gueto de vila aos guetos da favela, em memórias, buscando a paz. O gueto traz os tambores como cultura e a gente tem a música nigeriana, a cultura bantu e tantas outras etnias. Eu tenho de dizer que oralidade aqui é lei, porque conversamos. Na Bahia se faz muita gozação com o outro, mas para buscar conhecimento e relaxamento
na conversa. A Bahia convida a conversar, a viajar pela história. O Brasil precisa contar, até onde se lembra, a história dos seus antepassados. Precisa se conhecer mais. Nós seríamos muito menos ofensivos um com o outro se conversássemos. A violência doméstica e a violência do homem contra a mulher não podem ser e nunca serão a resposta. Pelo amor de Deus! Em nome do Senho Jesus Cristo, respeitem o candomblé.”
Carnaval na vanguarda, confiança na cultura
“A Bahia chama para o descanso. Mas a Bahia se preparou muito para várias questões, por ter se posicionado sempre como vanguarda no Brasil. Muitas vezes o significado de baiano ainda está sendo criado por nós, porque a gente não se contenta com o que já fez. Os afro-sambas, por exemplo. Antes de surgirem como a incorporação de elementos africanos ao samba, eles já existiam com João Gilberto, que os levou ao Rio de Janeiro. Com o João, o baiano foi junto para o Rio. O baiano e seus movimentos. E o que se trouxe de lá, Roberto Carlos, por exemplo, tudo interessou à Bahia, porque a gente se interessa pela história. E a música passa por todos esses questionamentos. O samba-reggae, criado aqui, não existiria sem o Jorge Ben, no Rio. Porque aqui nós conversamos política cultural. Um artista nascido no mesmo país que Joãosinho Trinta e Wilson Simonal se contagia. Aquilo vem com a gente, como uma força com a qual sempre podemos contar. Qualquer momento em que você se lembre de Simonal é luz. Você se transforma, se transporta para uma coisa grande, uma coisa boa, um pensamento bom. A gente tem muita confiança na cultura, que não deixa de ser uma política fácil, por não precisar ser política partidária. A política cultural é diferente. Na Bahia, tomamos a dianteira com uma economia educativa. O axé nasceu aqui para colar com o artista. O axé é uma das poções espirituais a encarnar na pessoa, no artista. É música de cura. Os músicos brasileiros buscam reformas, novas misturas. É importante nos olharmos. Não devemos nos dividir tanto. O Carnaval do Brasil tem um poder gigante. É a oitava maravilha do mundo, ao unir indícios sobre os orixás. É um reacerto por nós mesmos. Os africanos são os parentes mais próximos da nova mistura, sabendo que nós temos um legado de miscigenação. Isso a gente quer expor. Não importa que nossos pensamentos sejam divergentes. Nenhum pensamento pode ser violento. A Bahia está chamando para a discussão. Para o Carnaval, que é nossa potência. O Brasil é uma família que declara amor à guerra. É preciso amor para combater essa violência. Fiz uma música para homenagear Dom Philips [o jornalista britânico assassinado durante uma reportagem na Amazônia, junto com o indigenista Bruno Pereira, em junho de 2022, e que morava em Salvador]. Parece tanto comigo esse cara, rapaz, porque ele saiu de outro lugar e veio aqui para ensinar nas comunidades. Que coisa feia, matar quem ajuda o país a se educar! Minha música se chama Rei Dom, sobre esse vizinho que ia dar aula de inglês na minha escola e na escola ao lado e acabou morto.”
Jurado do The Voice Kids, a entender o programa de entretenimento como um projeto social.
Quinze mil filhos
“Eu vivo muito bem com os meus filhos [Miguel e Nina, de seus dois primeiros relacionamentos; Francisco Brown, Clara Buarque, Cecília e Leila, do casamento com Helena Buarque; e Daniel e Maria Madah, com Danielle Barvanelle]. Eu fui no amor em busca desses filhos que Deus me deu. E, melhor ainda, filhos que não têm preguiça de fazer as coisas. Eles mudam demais, é maravilhoso. Vão crescendo e ficando independentes. E, ao mesmo tempo, “orgulhando”! Todos os meus filhos são como eu, estudiosos. Minha filha Nina, formada em música nos Estados Unidos, arrasa, canta pra caramba. Chico Brown é um gênio, o maior músico deste país. Eu o chamo de príncipe Buarque! Quando ele nasceu, era muito feio, o bichinho… Ele toca com a Marisa Monte hoje, uma honra, até pelo que ela significa para todos e para mim. Ela me conhece profundamente. Marisa sempre me contou tudo. Ela é muito madrinha de nós dois. Minha filha Clara tem uma coisa como atriz e cantora muito forte e, puxa, eu me senti o Pateta, o Mickey Mouse quando ela entrou na série da Disney Tudo Igual...SQN, uma honra gigante. Miguel é tudo, um superprodutor, ele é do reggae, fico pirado de ver como ele fala com a Jamaica. A Cecília, muito artista, como canta! Ela vai assombrar. Não vou dizer o estilo senão estraga a surpresa. Mas ela não está com pressa, o que é o melhor. Nenhum deles está com pressa. Minha filha Leila eu acho a mais rítmica dos filhos, ela faz tudo com muito suíngue, parece que flutua com o tambor, com pegada de mulher pianista. Meu filho Daniel é muito musical e gosta de brincar, viajo muito nisso. O abraço com os filhos não tem preço na vida, isso é eternidade. Eu tenho 15 mil filhos, não só 8, eu formei todos para o mundo.”
The Voice Kids, o orgulho
“Por meio do programa The Voice Kids, eu também lidei com crianças e entrei em conflito com a mídia, pois não vi a divulgação disso como um projeto social. Mas eles tinham aulas. Sou fã do programa. O The Voice Kids me conecta até com a classe média brasileira. A maioria das crianças que chega ali vem de escolas, tem uma formação. Eu nunca tive essa experiência, de conversar com crianças que estejam ligadas a uma coragem de emocionar tão cedo. Porque tem um derrame emocional naquilo ali, positivo. Eu me conecto também com a criança. Eu brinco muito naquele programa. E ali há o reconhecimento da cultura afrobrasileira, quando, por exemplo, a gente usa o berimbau da capoeira. Esse programa foi maravilhoso para mim, porque virou um botão para a carreira. As pessoas puderam me conhecer sem edição. Eu falo mesmo! A verborragia é um bombril interno, um tiro que a gente quer falar e aquilo ajuda a gente escoar o que não quer. O The Voice Kids é o meu parquinho. No Candeal eu trabalhei com crianças que estavam em conflito com a lei e ainda trabalho, não é que parou. Minha criança interior brinca tanto que resolveu fazer casa. Criou casas, unidades, esgoto para a minha comunidade, respaldada por ela. Quem me libera para fazer música é o Candeal. Eu viajo mas estou ali, buscando as coisas.
Carlinhos Brown rodeado pelos filhos Clara, atriz (a partir da esquerda), a cantora Cecília, o instrumentista Chico Brown, “o maior do país”, o superprodutor Miguel, Leila e Daniel: a explosão musical a inclinação artística são marcas familiares.