Cantos de celebração

Masp traz representações do cotidiano e da espiritualidade indígenas na América, Oceania e Escandinávia.

Duhigó, Nepu Arquepu [Rede Macaco] [Monkey Hammock], 2019Masp traz representações do cotidiano e da espiritualidade indígenas na América, Oceania e Escandinávia.

Celebrar a natureza é o que os povos originários fazem para preservar a vida. Celebrar, ou ligar respeitosamente a própria existência a de todos os outros seres, pode adiar o fim do mundo que às vezes parece bater à porta. Segundo o conhecimento indígena, a cada dia mais assimilado pela ciência tradicional, fortalecemos a nossa continuidade como espécie quando reverenciamos o ambiente que nos propicia a vida.

Em colaboração com o norueguês Kode Bergen Art Museum, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) relata essa celebração na mostra coletiva Histórias indígenas, que ocupa as galerias do primeiro andar e o segundo subsolo da instituição paulistana até 25 de fevereiro, partindo depois para uma temporada em Bergen, na Noruega, entre abril e agosto de 2024.

Com o objetivo de evidenciar diversas perspectivas dessa arte celebratória, 13 curadores indígenas ou de ascendência indígena selecionaram 170 artistas das Américas do Sul e do Norte, Oceania e Escandinávia e suas 285 obras de várias mídias e tipologias, origens e épocas, do período anterior à colonização europeia até o presente.

A exposição, que dá continuidade à série Histórias no Masp (entre 2016 e 2022, o museu circulou pelos temas infância, sexualidade, região afro-atlântica, mulheres, dança e histórias brasileiras), é composta de oito núcleos. Em sete deles, são observados a família, a comunidade, a terra, a construção do eu e a pinturno deserto, entre outros aspectos do cotidiano das comunidades no Canadá, México, Austrália, Peru, Nova Zelândia, Suécia e Brasil.

Por fim, no oitavo núcleo, todos os curadores detalharam os ativismos de suas etnias contra as agressões externas. Para compreender a mostra, é im-portante considerar que o termo “história” abrange tanto a ficção quanto a não-ficção, os relatos históricos e os pessoais. Essa compreensão, distante da noção tradicional de história documental, dá à trajetória de um povo um caráter mais aberto, polifônico. Em norueguês, o termo “história” também partilha desse duplo significado, constituindo tanto uma interpretação do passado como uma narrativa pessoal. O projeto evita a visão enciclopédica, optando por uma seleção concisa, de modo a justapor esse recorte a outros de diferentes partes do mundo.

Acelino Tuin Huni Kuin, Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU), VALE

Outra noção de tempo

Os curadores-adjuntos de arte indígena do Masp Edson Kayapó, Renata Tupinambá e Kássia Borges Karajá construíram o núcleo brasileirda mostra, intitulado Tempo não tempo. A ideia que embasa essa seção é a de que a atemporalidade atravessa a criação humana, revelando elações diversas com o espaço e preservando uma existência pautada em ciclos da natureza, a dialogar com o visível e o invisível. O núcleo subdivide-se em quatro partes, Mitos e ancestralidade, Grafismos, Autorrpresentações e Vida cotidiana.

O intuito de Tempo não tempo é refletir sobre as histórias da criação, das mulheres, dos homens, dos velhos, das crianças, das encantarias, dos ritos, da espiritualidade, do cotidiano, da educação. O que é contemporâneo, o agora, não abandona as raízes da tradição e é “correnteza de passado e presente”, segundo os curadores. Destaca-se nesse conjunto a obra Nepu arquepu (Rede Macaco, 2019), de Duhigó, que retrata o ritual de nascimento de um bebê do povo Tukano, por meio do descanso da mãe na rede após o parto.

A curadora Kássia Borges Karajá, integrante do Movimento dos Artistas Huni Kuin (Mahku), cuja seleção de obras está exposta na 35ª Bienal de São Paulo, ressalta que sua noção de tempo foge daquela tradicional, consumista, ligada ao relógio urbano: “Quando o corpo quer, dormimos. Não é o governo que nos pede isso.”

Aos 62 anos, a artista e curadora, cujo pai era Karajá, nasceu em Goiás e trabalhava como professora de Artes no Amazonas, em 1994, quando conheceu Ibã Huni Kuin, fundador do Mahku em 2013. Ibã, um dos 14 mil integrantes daquela comunidade loclizada no Acre, na divisa com o Peru, desenvolveu a ideia de transformar em imagens os cantos tradicionais huni meka, para que fossem mais bem compreendidos por toda a população.

E Kássia passou a conceber telas que corporizam as histórias. Normalmente, ela confecciona sua obra narrativa no prédio mesmo em que será exposta, como aconteceu na Bienal. No Haus der Kunst de Munique, há dois anos, ela julgou ainda necessário, antes de conceber e expor sua obra, criar um “cântico de cura” para limpar o museu, que sentia sobrecarregado espiritualmente.

“A mostra no Masp é importante para nós porque apresentamos outros artistas, especialmente as mulheres”, acredita Kássia. “É preciso abrir este conhecimento sobre o que nós indígenas fazemos. Já temos nosso Andy Warhol, o Jaider Eisbell”, diz ela sobre o artista indígena brasileiro mais renomado, morto há dois anos, “e é hora de outros serem conhecidos, de ampliar esse universo”. A artista, que se prepara a partir de novembro para uma residência de dois meses em Paris, onde dará seminários e escreverá sobre as mulheres indígenas, não tem dúvida da necessidade mobilizadora do que faz, razão pela qual contribuiu para a seção Ativismos na exposição do Masp: “Toda arte indígena é resistência, todo dia, toda hora, o tempo inteiro.”