Djamila Ribeiro: 'O luxo, para mim, é um direito'

Integrante da Academia Paulista de Letras, a filósofa e escritora tornou-se voz da causa negra, reivindica a sofisticação ao alcance de todos os de sua origem, e espera que pessoas negras tenham poder de decisão na retomada democrática.

Robb Report_page75_image153Jornalista, escritora, ativista feminista, Djamila Ribeiro foi também eleita à Academia Paulista de Letras.

"A ferida que sangra agora é velha, foi aberta anos atrás e não cicatrizou", conta Djamila Ribeiro em Cartas Para Minha Avó, o quarto livro que a filósofa e integrante da Academia Paulista de Letras lançou em 2021. Seu pai, Joaquim José Ribeiro dos Santos, estivador em Santos, onde ela nasceu, decidiu pelo nome de batismo da caçula após ler o significado no periódico Jornegro, de 1978. Djamila remete a “bela” em árabe e era, segundo o jornal, o nome de uma das mulheres do profeta Maomé. Seu Joaquim lutou pelos direitos dos negros, razão pela qual a militância cai bem nela. Quando o pai morreu em 2002, aos 52 anos, com câncer, foi duro demais. Um ano antes partira a mãe, Erani Benedita, aos 51, com a mesma doença. Tais perdas abriram a ferida na jovem de 22 anos.

Quem a vê hoje aos 42, bela, altiva, não imagina o tamanho dessa dor. Como ela diz, as mulheres negras são tidas por naturalmente fortes, mas a razão para essa fortaleza está no Estado brasileiro omisso e violento, que as obriga a encontrar forças sozinhas. O curso de Filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em Guarulhos, foi feito sob grande pressão, enquanto sua filha, Tulane, passava a semana em Santos. Hoje mestre em Filosofia, Djamila sabe que sua história, fincada nas chagas do racismo, traz estímulo a quem passa por discriminação.

Em maio de 2022, a filósofa criou o espaço Femininos Plurais em Moema, São Paulo, para assistir vulneráveis. O instituto sem fins lucrativos, cujo nome é o mesmo da coleção de livros sobre a questão negra que ela dirige na editora Jandaíra, dá atendimento nas áreas jurídica e psicológica, além de oferecer biblioteca e internet gratuita, no bairro de classe média alta onde está situado. É parte da militância de Djamila ocupar espaços negados àqueles com sua origem social, como os da sofisticação. Ela já não se incomoda que reclamem de seu gosto por coisas boas e bonitas. “O luxo é um direito”, como diz na entrevista a seguir.

Como você se percebe após anos de combate ao racismo no Brasil?

Eu me percebo como alguém que nasceu em uma família cuja figura paterna era ativista pelos direitos dos negros. Lembro-me de aos 6 anos ir a uma manifestação contra a privatização do Porto (de Santos). Meu pai colocou nomes africanos em mim e na minha irmã, Dara. Tirou meu nome do periódico da militância Jornegro, e eu tirei o nome da minha filha, atualmente com 17 anos, desse mesmo jornal. Tulane significa “aquela que veio para trazer paz”. Nasci nesse seio ativista e fui trabalhar na Casa de Cultura da Mulher Negra, em Santos. Nessa ONG entendi o que ignificava ser uma mulher negra.

Quantos anos você tinha então?
Dezenove. Eu trabalhava na biblioteca, onde conheci livros feministas. Aos 23, em 2003, viajei pela primeira vez de avião, para o Fórum Social Mun- dial em Porto Alegre. Foi um lugar de formação importante. Eu já não tinha meus pais.

Lembra-se das manifestações de que participou na infância?

Eu não sabia do que se tratava, só repetia o que eles falavam. Quando a manifestação terminava, meu pai nos levava para o Pastel Carioca, uma pas- telaria no centro histórico de Santos. Então a gente sabia que depois da obrigação haveria um momento de festa. Meu pai fez até o ensino fundamental, mas era culto. Tínhamos de tirar boas notas, porque ele queria filhos com boa formação. Ele nos presenteou com livros, nos levou ao teatro e às bibliotecas, fez a gente aprender inglês.

E sua mãe?
A minha mãe nasceu em Piracicaba, São Paulo, e saiu de casa aos 18 anos para ser doméstica na capital. No Carnaval de Santos conheceu meu pai. Ao se casar, largou o trabalho para ser dona de casa. Ela queria ter estudado, jogado basquete, não pôde. Era brava com a gente e nos arrumava bem, porque sabia como a sociedade reagia. E era do candomblé, me levou pela primeira vez ao culto quando eu tinha 8 anos. Minha mãe me ensinou a andar de espinha ereta, a peitar o mundo.

"Percebi o racismo na escola. Ninguém queria fazer par comigo na festa junina. Naquele ambiente, eu me silenciava"

Quando criancça você percebia o racismo?
Com meus pais e irmãos, me sentia amada. Levei o baque no ensino fundamental. Na festa junina recusaram ser meu par. “Não vou dançar com a neguinha, a lelekinha”, falavam. Tudo era naturalizado. “Ah, é brincadeira, deixa para lá”, me diziam. O sentimento de exclusão surgiu em mim durante a vida escolar.

Seu Pequeno Manual Antirracista ganhou o Prêmio Jabuti de 2020, algo que você, na época, considerou ser a vitória de um trabalho, mas, sobretudo, da justiça. O que este livro lhe trouxe?

Meu livro é fruto de trabalhos anteriores, de negros que lutaram por políticas pu´blicas. Sou a primeira pessoa da minha família a fazer univer- sidade, fruto dessas políticas, e de intelectuais que refutaram a ideia de democracia racial. Em 2019, escrevi com linguagem generosa, chamando para a conversa. O livro foi adotado nas escolas.

Djamila Ribeiro - Bob Wolfenson 3Djamila relembra de fatos que a levaram a ser uma das importantes porta-vozes de mulheres pretas.

A sociedade brasileira mudou após tantos anos de ativismo?
Gosto de uma frase do Gilberto Gil: “O mundo, ele é pior e melhor ao mesmo tempo.” Sob alguns aspectos, houve retrocesso, mas no debate pu´blico não se nega mais a existência do racismo. Os negros são lidos.

Como o candomblé foi importante em sua vida?
Quando criança, eu o neguei. Certa vez, no recreio, uma menina arrancou meu turbante e eu, durante o preceito, estava careca. O preceito é uma iniciação, não se pode ingerir carne, é preciso vestir branco e comer no chão, sobre a esteira. Eu estava careca porque na iniciação você tira o cabelo para o orixá. Fazer isso na escola foi traumático, era uma religião marginalizada. Quando morreu, minha mãe estava afastada do candomblé, em razão das decepções que teve nos terreiros, e me afastei também. Fui kardecista até que, em 2010, uma amiga se iniciou no terreiro da mãe Ana de Ogum, em Taboão da Serra. Fui ver sua saída como filha de Iansã. A saída ocorre após cumprir os preceitos. É sua apresentação à comunidade, renascida naquele orixá.

No momento em que minha amiga saiu, tive uma crise de choro. Voltei então a frequentar o terreiro, encontrei o pai Rodney William (Babalorixá e doutor em ciências sociais pela PUC-SP, autor do livro Apropriação Cultural) senti que queria ficar naquela casa. Sem o candomblé, eu não conseguiria fazer tudo o que faço, nem ter calma diante das situações duras. Sou filha de Oxóssi, quero saúde mental e espiritual. Quando estou angustiada, vou conversar com os meus orixás e saio de lá fortalecida. A minha comunidade me fortalece.


Você a levou para a posse na Academia Paulista de Letras, em setembro. Por quê?

Historicamente, as mulheres masculinizaram-se para obter respeito em veneráveis espaços. Então adentrei aquele lugar majoritariamente masculino, branco, sendo quem sou, uma mulher do candomblé. No momento de conquista, a comunidade também tem de estar comigo. Levei-a. E fui com um vestido baseado em modelo usado pela cantora Whitney Houston, sou superfã dela. Na faculdade só se podia gostar de mu´sica erudita! Minha primeira coluna na Folha de S. Paulo, há três anos, tinha o título “Desculpe, Whitney”, reafirmando meu amor por ela.

Como você vê o luxo?
O luxo foi muito negado a pessoas como eu, como se não merecêssemos coisas boas. Parece-me importante quebrar essas priso~es mentais. Quando eu fiz publicidade para a marca Prada, em 2021, disseram:

“A maioria das mulheres negras não pode usar Prada”. Mas qual é o problema? As mulheres brancas não podem me ver como uma mulher que usa Prada? Luxo, para mim, é um direito.

Podemos usar boas coisas, ter boas experiências. Gosto dos estilistas brasileiros, negros, da mesma forma que uso marca de luxo estrangeira. Amo o artesanato da feirinha na Avenida Paulista. Belíssimo o trabalho das artesãs, os bordados. Para mim, a confecção sofisticada não é o u´nico lugar do luxo.

"Percebi o racismo na escola. Ninguém queria fazer par comigo na festa junina. Naquele ambiente, eu me silenciava."

Qual relevante é ver a moda engajada na luta antirracista?
A moda tem poder. Ela cria imagens. Nós nos vemos em outro lugar a partir de um signo de vitórias, de beleza, de afirmação. É importante fortalecer os trabalhadores da área. Que nesse ecossistema a gente possa estar presente na frente e atrás das câmeras.

Por que escolheu se formar filósofa?Na adolescência, meu pai nos apresentou Maquiavel, Marx. E eu tive contato com o assunto também no Partido Comunista de Santos, que ele frequentava. Havia a União Cultural Brasil-União Soviética, onde a gente aprendeu a jogar xadrez. Tive acesso à educação culta por isso. Depois que acabou a União Soviética, acabou tudo.

Você cursou jornalismo tambe´m?
Sim, em Santos. Mas parei porque engravidei da minha filha. Em 13 anos com meu marido, jamais deixei de trabalhar e fazer militância. Por mais que eu amasse ser mãe, não gostava da imposição da maternidade, que para mim significava estar em casa sem fazer nada da vida. Casada, fui secretária em uma empresa no Porto de Santos. E na internet descobri o campus de Humanas da Unifesp, em Guarulhos. Sempre gostei de filosofia, mas depois que meus pais morreram, esqueci muita coisa, para não sofrer. Quando elaborei esse luto, me lembrei do que gostava. Me inscrevi nesse vestibular da Unifesp e não contei para ninguém.

Por que não contou?
Minha filha tinha 3 anos e eu sabia que seria problema para a família dele. Pedi para ser mandada embora e a empresa disse não. Fui até meu marido: “Olha, minha mãe não pôde estudar, minha avó não pôde ajudar e eu estou quebrando esse ciclo agora.” Ele levou um susto e organizou tudo para que eu pudesse seguir. A mãe dele morava perto, a Tulane passava o dia na escolinha, mas mesmo assim teve cara feia. Eu fui porque sou teimosa. Tinha 27 para 28 anos e entendi que precisava passar a semana em São Paulo com a minha irmã se quisesse continuar.

Mas voce^ estava casada ainda?

Sim. Eu me separei em 2016, depois do mestrado, que defendi em 2015. Eu estudava Simone de Beauvoir na graduação, fiz um paper no u´ltimo ano e fui apresentá-lo nos Estados Unidos. Escutei a Tulane falando com a tia paterna, que morava lá: “Quando eu crescer, vou estudar em São Paulo igual à minha mãe!”. Ela me libertou, achava o máximo que eu estudasse. Terminei a graduação com 32 anos, entrei direto no mestrado e defendi a minha dissertação, também sobre Beauvoir, aos 35. Em 2016, fui secretária-adjunta municipal de Direitos Humanos e a Tulane veio morar comigo em São Paulo.

Quando lhe ocorreu escrever sobre a luta antirracista?
Participei da criação de um grupo de estudos interdisciplinares em raça e sexualidade na faculdade. Em 2017, lancei Lugar de Fala porque sentia necessidade de um livro com minhas reflexo~es. Eu tinha alguma visibilidade, então pensei em Feminismos Plurais, uma coleção acessível. Em um ano publicamos seis títulos, agora são 13.

Como avalia os próximos passos?
Estamos em uma virada democrática no país. Acho fundamental a população negra fazer parte deste processo. Eu não desejo ocupar o espaço da política institucional. Meu trabalho é político e apartidário. Mas espero que as pessoas negras tenham poder de decisão nesta retomada.