Bob Wolfenson coroa o seu legado artístico de 53 anos com nova exposição de retratos restaurados da inundação em seu estúdio em 2020
Aos 68 anos, Bob Wolfenson reflete sobre sua vida e obra, diz que não há sucesso sem fracasso nem submersão sem emersão.
Bruna Lombardi e Cacá Rosset.
Era uma quinta-feira fria no finzinho de junho, e Bob Wolfenson, um dos mais aplaudidos fotógrafos brasileiros, tinha acabado de fechar a data da sua próxima exposição. Estava animado. Havia chegado na véspera de Nova York, onde vira a exposição do fotógrafo americano Richard Avedon (1923-2004), o que lhe inspirou a finalmente bater o martelo para expor, pela primeira vez, o conjunto de retratos manchados pela água da inundação em seu estúdio em São Paulo. “Era uma exposição pequena e havia retratos de Avedon com pequenos rasgados. Eu não estava bem certo de fazer essa minha exposição só com os retratos restaurados, mas pensei na hora: por que não?”
A água barrenta da chuva subira mais de um metro em suas instalações. O horror de ver o seu estúdio destruído, equipamentos perdidos e cópias originais de retratos memoráveis danificadas aconteceu em fevereiro de 2020, um mês antes da pandemia.
“Foram duas pandemias juntas”, ele relembra. Mas um clique lhe acendeu a mente. “Ninguém toca em nada até eu chegar”, assim determinou aos assistentes.
“Ao ver os escombros, cheguei a rasgar alguns retratos, mas de repente vi que havia uma linguagem ali e comecei a fotografar os retratos molhados e cheios de lama”, conta.
Bob Wolfenson diz que não há sucesso sem fracasso.
As peças foram salvas e restauradas no longo processo de reconstrução após a tragédia. A foto original de Caetano Veloso (levantan- E do o olhar e a sobrancelha como um farol, auto-grafada pelo músico com a carinhosa dedicatória “Bob, só você !” estava enquadrada na parede e escapou ilesa das águas barrentas. Mas havia duas delas na gaveta, junto com outras.
“Foram fotos que antecederam a esta. Até chegar nesta eu passei por outras”, conta ele.
O mesmo aconteceu com retratos de Ariano Suassuna, Oscar Niemeyer, Bruna Lombardi, Arnaldo Antunes, entre outros. Aos 68 anos, e depois de 20 anos no mesmo estúdio da avenida Moffarej (na Vila Leopoldina, SP), Bob decidiu mudar o conhecido espaço frequentado por modelos e artistas. A nova exposição coroa – mais um pouquinho – os 53 anos de carreira e a maturidade artística deste ícone da fotografia brasileira. Na efeméride de seus 50 anos de carreira, celebrada no ano passado, embora tenha sido exatamente completada em 2020, Bob lançou um livro sobre as histórias de suas fotografias de moda, os trabalhos autorais, os retratos de personalidades e os nus artísticos.
Em Bob Wolfenson- O Livro Falado, ele conta os bastidores de várias imagens memoráveis e as suas impressões pessoais sobre cada retrato. A beleza das imagens de Bob e a singularidade de seu modo de fotografar revelam instantes das vidas de mulheres e homens ilustres e anônimos, velhos e jovens, fashionisticamente vestidos ou completamente nus.
Caetano Veloso e Angeli.
Nascido no bairro do Bom Retiro, na região central de São Paulo, ele começou sua carreira aos 16 anos na editora Abril. Aos 20, abriu seu próprio estúdio. E, oito anos depois, em 1982, mudou-se para Nova York e conseguiu trabalho como assistente do fotógrafo Bill King. Ao voltar para o Brasil, deu largada a uma vitoriosa carreira, consagrada em vários momentos de sua trajetória. Nas páginas a seguir, leia trechos da sua entrevista a Robb Report Brasil.
“Sempre tive um fascínio pelo erro”
Uma nova memória instaurada sobre a memória. Uma sobrememória com uma nova materialidade. A arte reelaborada de Bob Wolfenson por meio dos retratos marcados pela inundação sofrida em 2020 fez lembrar palavras do arquiteto Paulo Mendes da Rocha (1928-2021), ditas a Robb Report Brasil à época do incêndio da catedral de Notre Dame, em 2019. “Não se apaga a história. A memória é um ato político”, disse o ícone da arquitetura brasileira, vencedor do Pritzker 2006, ao comentar que deixaria a cratera aberta pelo incêndio na Notre Dame se tivesse que apresentar um projeto ao governo francês. “As fotos manchadas eram antes retratos rejeitados por mim. Não pelo retrato em si mas por algum defeito na fabricação física deles. Mas a inundação apagou toda a questão de defeitos e uniu as fotos. Criou um conteúdo que elas não teriam juntas por serem assuntos muito diversos.” As fotografias serão expostas em outubro na Faculdade de Moda do Senac, em São Paulo.
Como você liga este trabalho aos seus 53 anos de carreira. Como foi enxergar essa oportunidade como arte?
Tive um clique que acho que veio a partir do repertório que eu tenho, inclusive pensando em como algumas pessoas lidaram com incêndios e também na linha do que disse o Paulo Mendes da Rocha. Você não pode apagar a memória. A diferença do artista para o não artista é que você recolhe no real aquilo que todo mundo despreza. Aquilo que para a maior parte das pessoas não faz o menor sentido. “Joga fora, estragou tudo”, alguém diria. Não, o estragado é o que me interessa. Apesar de eu viver em um mundo muito fabricado, no meu trabalho como fotógrafo de moda e publicidade, eu sempre tive um fascínio pelo erro. Tem uma frase do Oswald de Andrade que eu adoro: “Quero a contribuição milionária do erro”. Não há sucesso sem fracasso, não há submersão sem emersão. Esse foi o clique que me deu ao chegar no escritório do estúdio destruído pela inundação. Em relação a minha trajetória, eu há dois anos fiz 50 anos de carreira e fui muito celebrado. Lancei um livro no ano passado, O Livro Falado.
E foi a razão da sua recente palestra na Feira do Livro em São Paulo.
Exato. Os textos precedem as fotos. É um livro mais de histórias do que de fotografia, apesar de ter muita fotografia. Acho que sou muitos fotógrafos. E eu não seria aquele que estou sendo se não fossem todos os outros que me habitam. Eu não hierarquizo o que é melhor e o que é pior. Eu gosto de ser todos esses. Eu preciso deles todos para eu ser o que eu estou sendo.
São quantos?
Não é quantificável (risos), mas eu sou o fotógrafo de retratos, tenho meus projetos pessoais. Esse é um projeto pessoal. Sou fotógrafo de moda, faço publicidade. Durante muitos anos, fui fotógrafo de nus. Há todo esse trânsito entre várias disciplinas. Fui me desenvolvendo nisso. Se há alguma coisa original no meu trabalho é o fato de eu transitar com essa desenvoltura. Considerando as imagens em si, tudo já foi feito de alguma forma. Mas o fato de alguém fazer tantas coisas assim diferentes, com uma intensidade, talvez seja mais raro.
Você tem o frescor da renovação. Falta algo?
Eu tenho essa ambição. Sou uma pessoa ambiciosa, no sentido bom e ruim da palavra. Porque a ambição cria também uma frustração. Mas, no sentido bom, a movimentação que a ambição me dá é o que me faz chegar em lugares em que a vida é uma aventura. E eu me aventuro nela. E obviamente, pelos limites todos que a realidade impõe, você se frustra. Mas acho que eu tenho esse frescor e não é inoculado. Ele é natural. Ele é uma inquietação que parte de mim. Não é aplicação, não é estratégia. Obviamente, eu sou estratégico por natureza porque, para sobreviver, você tem que ter algum tipo de estratégia. Mas não é por aí que eu me movo. Engraçado como surgem as ideias. Eu vi a exposição do Richard Avedon em Nova York, e, ao chegar ao Brasil, estava me sentindo meio emperrado se fazia ou não o projeto da minha exposição no Senac. Mas vi essa exposição do Avedon, com fotos rasgadas, mas originais, e depois pensei: Por que não?
Não queria morrer, não.Morrer é meio de mau gosto. Eu gosto de viver. Sou otimista. A vida é gostosa” E por que você nunca expôs essas fotos? Na época, publiquei algumas dessas fotos na Folha e na Bazaar. A inundação foi dia 10 de fevereiro de 2020 e a pandemia fechou o Brasil dia 15 de março. Foi um mês antes da pandemia. Eu tive portanto, duas pandemias. E aí tivemos esses dois anos e pouco de pandemia, e não dava para fazer nada. No final de 2022 eu fiz uma exposição comemorando meus 50 anos de carreira, que teria sido em 2020 na verdade.
E fui adiando e a gente arrumou a celebração para 2022. Além do livro, a revista Elle fez uma edição, com cinco capas, cento e poucas páginas, todas as fotos eram minhas. Foi bonito.
Então essa exposição também coroa os seus 50 anos de carreira? Também.
Agora já são 53. Tenho 68 anos. Daqui a dois anos terei 70. Penso muito nisso. Gente, 70 anos... estou relendo alguns livros, e descobri que Machado de Assis morreu com 69. Escreveu Dom Casmurro com 60. Antigamente, as pessoas com 69 anos eram uns velhos acabados. Eu me sinto ainda muito vitalizado. Mas vai saber o que vai acontecer amanhã.
Mas você tem medo da morte ?
Aaah, não queria morrer, não. (risos). Morrer é uma coisa de muito mau gosto. A vida é legal. Eu gosto de viver. Sou muito otimista. Eu estou agora, aos 70 anos, construindo um novo estúdio. Animado, fazendo obra, construção. Fiquei 20 anos neste estúdio. Poderia falar tchau, vou para casa. E ficar lá de pijama e costurando para fora. Não, vou montar um estúdio novo. Vai ser uma espécie de ateliê. Comprei um galpão na Vila Romana e estou reformando para fotografar retratos, que, digamos, é o traço mais permanente da minha vida, onde a minha persona pública é mais reconhecida. E vou ter um lugar, uma sala para pôr meus livros, ter as minhas inspirações, um jardim, uma sala para os meus assistentes, uma sala de impressão. Um negócio novo. Você também tem seu lado ativista político.
Como vê o mundo e o Brasil hoje?
Vivemos uma época triste. O mundo está estranho. Houve um período iluminista no pós-guerra. Nos anos 1960, o Brasil piorou (com a ditadura). Depois, nos anos 1980, floresceu um pouco (com a redemocratização). Estes últimos anos foram muito chatos, com essa dicotomia muito exacerbada. Mas, como Caetano diz, o Brasil é um país original. Tem uma originalidade por ser esse país de língua portuguesa no continente onde todo mundo fala espanhol. Às vezes, eu me iludo e às vezes eu me desiludo. Às vezes, penso que o Brasil é uma potência, tem uma penetração no mundo. Aí você vai para fora e não é bem assim. A imagem do Brasil já foi muito pior, mas também já foi muito melhor. Eu sou otimista para a vida, porque a vida é gostosa. Mas não tenho muitas ilusões. Obviamente eu me empenho. Ajudo, falo, esperneio. Sou uma voz entre vozes.
Serviço:
Bob Wolferson Sub/Emerso
A exposição acontece no Senac Lapa (Rua Scipião, 67 - Vila Romana, em São Paulo).