Fátima Giovanna Coviello Ferreira: “Mitigar o déficit do setor químico brasileiro passa pelo destino do gás natural do pré-sal”

A diretora de Economia e Estatística da Abiquim traz um panorama sobre a indústria brasileira, em vários segmentos

Abiquim: setor químico não tem como aderir ao RDV agora - Energia HojeFátima Giovanna Coviello Ferreira, diretora de Economia e Estatística da Abiquim (Foto: Divulgação)

Nos 12 meses encerrados em julho de 2022, a indústria química brasileira registrou um déficit comercial de US$ 60,1 bilhões, superando o superávit comercial brasileiro total do período. Somente nos sete primeiros meses do ano, a participação dos importados no total do mercado brasileiro somou 42%. Em 2021, chegou a 46% - quando a demanda por produtos químicos aumentou em 20,5% em relação a 2020 - contra 30% em 2015. Em conversa para a próxima edição da Conjuntura Econômica, Fátima Giovanna Coviello Ferreira, diretora de Economia e Estatística da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), afirma o aumento do preço do gás natural, insumo essencial na fabricação de fertilizantes, colaborou para a balança em favor dos importados, além de pressionar o custo de produção da indústria local. “A forma de mitigar esse déficit é obter gás natural do pré-sal a preço competitivo”, afirma, indicando que essa é uma das propostas do setor para os candidatos à Presidência.

Qual balanço do desempenho da indústria química brasileira desde o choque da Covid-19?

Tivemos um encolhimento forte em abril de 2020, quando todos os setores foram fortemente impactados. Mas no mês seguinte já começamos a ver recuperação. O segundo semestre de 2020 foi recorde em termos de volume - houve muita demanda por embalagens para alimentos, máscaras, descartáveis hospitalares como máscaras e seringas. Também tivemos dificuldade em atender à demanda de secretarias de saúde por falta de álcool em gel, buscando rotas alternativas para conseguir matéria-prima importada. Esse aumento expressivo se deu sobre uma base fraca, pois 2019 não foi um ano dos melhores. Na verdade, a indústria química brasileira vem patinando há mais de dez anos, em que observamos crescimento na demanda, mas que não é correspondido pelo aumento da produção interna, ampliando a parcela de importação. 

A pandemia nos mostrou que é importante não sermos totalmente dependentes de alguns insumos.  A própria indústria conversou internamente, levamos para governo pleitos de que essa vulnerabilidade em relação a insumos farmoquímicos que são usados na área de saúde e parte dos descartáveis era muito ruim o Brasil depender de importação.

Num segundo momento, veio a questão dos fertilizantes. O Brasil tem a agricultura mais competitiva do mundo, mas somos deficitários tanto em fertilizantes quanto em defensivos agrícolas, devido à nossa falta de competitividade na matéria-prima principal de boa parte dos fertilizantes, que é o gás natural. Quando chegou a crise na Ucrânia o que já não era bom ficou pior: passamos a não só a ser mais dependentes como encareceu nossa pauta de importação, devido ao preço do gás natural e derivados do petróleo. Nossa matriz de matérias-primas está totalmente vinculada à matriz energética.

Há saída sustentável para a dependência de fertilizantes importados?

Hoje o Brasil está importando quase 100% dos defensivos agrícolas que usa. No que diz respeito aos fertilizantes, na parte dos potássicos - que dependem do potássio - importamos quase 100% , e dos nitrogenados, que derivam do gás natural, importamos de 70% a 75% da demanda. No passado, há 20 anos mais ou menos, nossa dependência por esses fertilizantes era de 30% a 40%, porque tínhamos uma escala menor de demanda e produzíamos mais. Mas acabamos não ampliando a produção das fábricas. Estas acabaram com produções estagnadas, atendendo uma fatia cada vez menor da demanda crescente, fábricas fecharam e projetos não foram levados adiante.

No nosso caso, o problema é a falta de competitividade do insumo brasileiro, o gás natural. Mesmo antes da pandemia, o gás natural brasileiro já custava três vezes mais que o americano e era quatro vezes o preço do europeu, e isso acabou afastando investimentos, que migraram para outras regiões. Depois da pandemia, e com essa guerra, a indústria ficou ainda mais prejudicada. Porque o preço do gás que o Brasil importa da Bolívia, além de outra parte de importação de GNL, foi às alturas. Chegou a quase US$ 30 por milhão de BTU em abril deste ano.  Agora recuou um pouco, mas ainda assim está em um patamar insustentável.

Qual a solução para nós? Produzir no Brasil explorando o potencial que o país tem do pré-sal. Hoje, parte expressiva desse gás é reinjetada, e o fato é que temos temos potencial para produzir uma série de coisas que hoje estamos importando, que nos daria mais segurança em momentos de choque. Levantamento do BNDES fatores para a viabilidade do uso desse gás (com seu respectivo uso na indústria, em termelétricas e para veículos pesados movidos a GNV).

Déficit comercial brasileiro de produtos químicos em 2021, em US$ bilhões
(itens selecionados)


Fonte: Abiquim.

Consideram que o atual quadro de crise energética na Europa pode influenciar positivamente nessa agenda do setor?

Entendemos que a indústria química brasileira tem potencial de ao menos duplicar seu tamanho e fazer com que país fique menos vulnerável a questões internacionais. Para isso, precisamos ter gás e energia elétrica a preços competitivos. No caso do gás natural, isso significa conseguir um preço de país produtor, como nos Estados Unidos, em que hoje custa em torno de US$ 6 por milhão de BTU. Com um preço nessa faixa, conseguiríamos atrair investimentos. Hoje, consumimos 10 milhões de metros cúbicos de gás por dia, e poderíamos chegar a quase 30 milhões num espaço de 15 anos. Mas essa demanda potencial só poderá se concretizar se o gás natural tiver custo competitivo, pois o preço do gás natural pode representar 80% do custo de produção, como no caso dos fertilizantes. Se isso for possível, podemos triplicar a produção de fertilizantes, reduzindo a dependência de forma expressiva. Também há boas oportunidades no campo do metanol, usado na produção de biodiesel. Além disso, o gás do pré-sal é pesado, rico em etano, que é matéria-prima nobre da petroquímica, serve para produzir eteno, polietileno e toda a família dos plásticos. Poderíamos ampliar a capacidade de produção de eteno em 2,6 milhões de toneladas/ano, das atuais 4 milhões de toneladas/ano.

Observam alguma reação de multinacionais nesse potencial brasileiro em expandir a produção?

Sim. Não tenho levantamento específico, mas percebemos multinacionais avaliando o Brasil, inclusive querendo trazer investimentos. Pois até para elas a conjuntura está difícil. O fato é que não podemos perder a oportunidade de ampliar essa indústria mais uma vez. O país sempre olhou para seus recursos visando a rentabilidade imediata, e o mercado de combustíveis sempre foi prioridade para o uso do nosso nafta. Estamos estagnados há quase duas décadas, observando o aumento da participação dos importados. E os choques que vivemos tem servido para abrir os olhos sobre as oportunidades que o Brasil tem.

Evolução da produção da indústria química brasileira
(índice média 1994=100)


Fonte: Abiquim.

Há uma proposta formalizada do setor?

Sim. Já estamos fazendo apresentações, e pretendemos divulgar um documento nas próximas semanas.  Além do gás, o texto inclui outras três áreas, que chamamos de missões. Uma é a da energia renovável, para que esta tenha uma participação crescente em nossa matriz. Destacaria aqui o hidrogênio verde, em que o Brasil tem potencial enorme, e a partir do qual também podemos produzir amônia e uréia, que são fertilizantes. Outra vertente é a do saneamento. O Brasil tem carência imensa na cobertura desse setor, e para eliminá-la precisa da indústria química, seja para ampliar a produção de tubos de PVC usados nos encanamentos - o PVC deriva do gás, pois depende do eteno para fazer o policloreto de vinila -, seja para os produtos usados no tratamento da água e do esgoto. A quarta missão é a dos produtos químicos feitos a partir de matérias-primas renováveis - como o  álcool etílico (etanol) para fazer acetatos, o eteno verde de biomassa, não só da cana-de-açúcar como o derivado de oleaginosas. O potencial do Brasil é imenso, e isso é que estamos levando para os candidatos à Presidência.

Há também um capítulo em que apresentamos propostas do que precisa ser feito para o gás natural não ser mais reinjetado e ser usado na indústria química. Veja que nos últimos 12 meses encerrados em agosto, o setor registrou déficit comercial superior a US$ 60 bilhões. Isso é mais que todo o superávit da balança comercial brasileira. O setor agrícola trabalha duro para exportar produtos primários, entre outros setores exportadores, para chegar a um superávit em torno de US$ 56 bi, enquanto a indústria química sozinha registra um déficit maior. Sendo um setor que agrega tecnologia, valor, gera empregos de alta escolaridade, que pagam bem.

Há alguma sensibilização do agronegócio em relação a essa agenda?

Diria que hoje estamos conseguindo um bom diálogo. Veja, o primeiro pleito de quem vai usar o insumo, fertilizantes e defensivos, é poder importar. Mas diante das dificuldades observadas nos últimos anos, com dificuldade de comprar fora, o caos logístico, aumento de custos, encontramos mais entradas para fazer pleitos em conjunto. Porque o que queremos, afinal, é produzir de forma competitiva, com custo adequado de matéria-prima.

Por FGV/IBRE