Rafael Cagnin, do Iedi: 'Aproveitar a transição energética requer investimento, por isso turbulência financeira internacional preocupa'

O economista analisa os desafios e oportunidades para o desenvolvimento do Brasil.

ibre (1)Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI). (Foto: Reprodução/Youtube)

Em que medida é atual contexto geopolítico afeta a agenda brasileira de competitividade?

Do ponto de vista internacional, o obstáculo que temos é a incerteza política, a possibilidade de se oscilar entre governos com visões muito distintas sobre a economia internacional, sobre o papel de cada país nessa economia. E aí trata-se sobretudo dos países centrais – temos eleições nos EUA, bem como na Europa, com efeitos surpreendentes. Daí podem vir as outras consequências, como para o regramento internacional como um todo.

Do ponto de vista comercial, devemos rumar para uma reglobalização. A globalização dificilmente vai ser revertida, mas o comércio caminhará em regras não muito consensuais, como vem ocorrendo. O processo ainda não está dado, mas o Brasil tem feito esforços inclusive para deixa-lo um pouco mais transparente, para ao menos resgatar um pouco políticas ou ações que têm algum parâmetro. O problema de um ambiente internacional sem regras minimamente consensuais é que quem pode mais é que sai ganhando. Hoje vemos uma ruptura de consensos anteriores, mas ainda não há clareza sobre quais são os novos consensos. Mesmo que se caminhe na direção de tolerar ou aceitar instrumentos que anteriormente eram vistos como fonte de distorções, como regras de conteúdo local, o que importa é ter uma regra consensual, clara.

Ainda acho que o ambiente internacional tende, a despeito de todas essas convulsões, a trazer mais oportunidades. Acho que todas as trajetórias de desenvolvimento de países emergentes têm muito de decisão interna, de clareza sobre quais são os objetivos e quais estratégias que a seguir, de consenso internos criados, mas também têm a ver com janelas da economia internacional. Vimos isso quando o Brasil se industrializou nos anos 60/70, bem como no Leste Asiático nos anos 1980. Hoje temos uma janela de oportunidade se abrindo que beneficia o Brasil, pelo fato de termos uma matriz energética limpa. Inclusive porque temos muita competência industrial no que a gente chama de indústrias de base, que são intensivas em energia. Se tivermos firmeza e clareza sobre a prioridade da sua agenda e sair na frente produzindo aço sustentável, cimento, entre outros, com energia renovável. Isso entra em diversos outros produtos, ajudando a descarbonizar também.

Quanto a essa oportunidade gerada com a transição energética global, há dois diagnósticos frequentes. O primeiro, no campo externo, é o de que uma eventual vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas pode comprometer o ritmo dessa transição. O segundo, no âmbito doméstico, é o de que falta governança nas políticas lançadas para apoiar o país na captura dessas oportunidades – a Nova Indústria Brasil (NIB), coordenada pelo MDIC, e o Plano de Transformação Energética, do Ministério da Fazenda –, o que pode comprometer seu sucesso. Qual sua avaliação?

Começando pelo Brasil, governança é uma questão muito importante, e nisso de fato não somos, digamos, o primeiro aluno da classe. Esse é um trabalho que devemos ir construindo. Incomoda-me um pouco o argumento de que você tem que ser ótimo em alguma coisa antes de começar a fazer algo. Na verdade, um processo de aprendizado é o oposto disso: você faz e aprende ao mesmo tempo. O que a gente precisa é garantir esse processo de aprendizagem. Em parte, não conseguimos construir processos de aprendizado, como foi na história recente, quando se descontinuam programas como uma frequência muito alta. Aí jogamos a bacia, a criança e a água pelo ralo. Essa governança precisa ser construída. Tanto é que esse processo de identificação e concretização das metas, que está em processo de elaboração e deve começar a ser divulgado a partir deste mês, está levando um tempo.

Estamos construindo esse diálogo, seja com setor privado, seja com as diferentes instâncias de governo. Não estou no governo, mas observo a interação de representantes do MDIC em grupos de trabalho envolvendo a NIB e a agenda de custo Brasil. Evidentemente, no mundo real, cooperação e competição acontecem juntos em algum nível. Hoje não diria que não exista competição entre equipes e ministérios sobre quem é que vai coordenar uma ou outra agenda. Mas isso não quer dizer que não haja interação, um nível mínimo de coordenação.

Outro ponto importante a considerar é que não é só o Brasil que enfrenta problemas de implementação dessas estratégias industriais contemporâneas. Temos relatórios, estudos que mostram muitas idas e vindas mesmo entre os europeus: coloca-se uma meta ampla demais, e depois tem que descer o nível. Ou ao contrário: colocaram uma meta específica demais, que não abarca todas as realidades relacionadas à obtenção daquele objetivo, e é preciso ampliá-la. Faz parte uma recalibragem constante e persistente. O que tem que ocorrer nesse processo é aprendizado, mantendo sempre um ambiente de abertura ao diálogo e de transparência. Hoje, de fato, a NIB tem muitas missões, e até agora num nível de generalidade muito elevado. Mas o Ministério sabe disso, e estão caminhando para objetivos mais concretos, que é o que deve começar a ser divulgado daqui para frente.

Particularmente, acho que a gente tem uma única missão do ponto de vista de desenvolvimento produtivo, que é fazer do nosso potencial de energia limpa um veículo de reindustrialização do Brasil. E isso não é pouco, porque se trata de uma cadeia inteira de geração, o uso dessa energia e a descarbonização no processo produtivo para diante. Isso não significa que não há outras coisas para serem feitas. A agenda de custo Brasil precisa avançar, tem reforma tributária a ser concluída, tem agendas importantíssimas na área por exemplo de farmoquímicos. Isso tudo pode ser contemplado. Mas acho que, em se tratando da janela de oportunidade, hoje falamos da transição energética. O que inclui também eficiências energética nas empresas, modernização do parque produtivo, a difusão de motores industriais mais eficientes.

Quanto à influência da conjuntura internacional, acho que a gente já passou do ponto para achar que, por exemplo, o governo Trump possa ser um problema para a transição energética. Os Estados Unidos têm mobilizado suas ações de política industrial a partir da retórica da segurança nacional. Essa motivação atravessou vários governos. Vamos lembrar que a manufatura avançada é lá de 2012. Então você tem processos de mudança de política Industrial no governo Biden que vem sendo construídos desde o governo Obama, passou pelo governo Trump, embora tenha chamado menos atenção, e que ganhou escala muito maior com Biden. Diferentemente do Brasil, os EUA não têm tradição de dar cavalos de pau em políticas, mudá-las de uma hora para outra. Acho pouco provável que isso aconteça agora, de fazer desaparecer programas da noite para o dia, ainda mais por serem coerentes com essa agenda ainda mais politicamente importante para Trump, que é a de segurança nacional. É possível que haja uma mudança de ênfase, mas não de política, pois se trata de algo que tem sobrevivido de 2012 pra cá.

Sob esse contexto, qual sua principal fonte de preocupação para o Brasil?

As turbulências financeiras são um problema, pois podem deprimir o ritmo de crescimento econômico ainda mais. Para o Brasil, que já tem um custo de capital elevado, turbulências no setor financeiro sempre acabam significando volatilidade alta, que afeta taxas de câmbio, interrupção da queda da taxa básica de juros, amplia a aversão a riscos, aumenta spread. Todas essas potencialidades sobre as quais falamos, em especial a da transição energética, tem dois elementos fundamentais. Um é um custo de energia, que temos que resolver, pois o Brasil produz energia limpa e barata, mas como enchemos de subsídio, penduricalho, e uma carga tributária grande sobre a conta, no final ela fica cara, especialmente no mercado regulado. Isso não assegura a competitividade do produto nacional como deveria. O outro elemento é o custo de capital. Aproveitar a transição energética implica investimento, e isso exige custo de capital adequado, mais baixo e em melhores condições, com prazo mais longo. Tudo isso implica custo de capital pois, sem investimento, não dará para fazer. Então, passar por esse processo de transição energética e tensão geopolítica sem crise financeira é o maior desafio. Principalmente porque, quando as economias centrais espirram, geram um maremoto nas economias emergentes, em especial as mais integradas.