Ester Sabino: “Não há motivos para achar que a vacina não irá funcionar”

Imunologista que participou do sequenciamento do novo coronavírus no Brasil fala sobre carreira, desafios epidemiológicos, e expectativa sobre o combate à Covid-19 .

ester-0-1140Ester é uma das maiores estudiosas da Doença de Chagas no país.  (Foto: Acervo Pessoal)

Seria exagero dizer que a vida de Ester Sabino mudou da noite para o dia. Mas o fato é que, em 48 horas, a professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) alcançou um status inédito em mais de três décadas de carreira. Não que ela tivesse passado despercebida até então. À frente de trabalhos importantes na área de imunologia, contribuiu para o avanço dos estudos sobre a Doença de Chagas e ainda participou dos primeiros sequenciamentos dos genomas do HIV e do Zika Vírus no Brasil – este último lhe renderia inclusive um convite para uma parceria com a Universidade de Oxford, no Reino Unido. Desta vez, no entanto, a repercussão ultrapassou os muros acadêmicos.

No 28 de fevereiro, a médica-pesquisadora, junto a cientistas do Instituto de Medicina Tropical da USP, do qual é diretora, do Instituto Adolfo Lutz e da Universidade de Oxford, anunciou um feito e tanto para a comunidade científica do Brasil: apenas dois dias após a confirmação do primeiro caso da Covid-19 em território nacional, o grupo liderado por Ester e outros brasileiros já havia conseguido sequenciar o genoma do vírus. Um tempo recorde, especialmente considerando que, em outras nações afetadas, a média para decodificação do Sars-Cov-2 havia sido de 15 dias.

A rapidez na descoberta foi importante para o início do combate à pandemia no País. Com o mapeamento do genoma, é possível entender o percurso da transmissão e o tempo em que o vírus está circulando em determinada região. São informações essenciais para a adoção de medidas de contenção a qualquer vírus.

Com isso, poucas horas depois do anúncio, o nome de Ester já era citado pelos principais sites de notícias. Ao mesmo tempo, as publicações sobre a descoberta se multiplicavam pelas redes sociais, também como um trunfo para quem defende o apoio à pesquisa nacional.

A façanha rendeu a ela ainda uma homenagem inesperada de Maurício de Sousa, criador da Turma da Mônica, que emprestou os traços da personagem Magali para transformá-la na cientista Ester. Um reconhecimento raro para a comunidade científica no País. “Foi importante porque era um momento em que os cientistas vinham sendo desqualificados”, comenta a pesquisadora, para quem a defesa do investimento na ciência se tornou a principal bandeira após a repercussão do sequenciamento.

“Não consigo entender. É tão obvio que temos pouco recurso... E é uma área tão importante! A ciência é algo que, se você para de investir, depois fica difícil de retomar. Perde-se uma geração, duas... é muito complexo”, explica.

Longo caminho até as pesquisas 

Ester vem de uma linhagem de médicos. O pioneiro da família foi seu avô, Manoel de Paula Cerdeira. A geração continuou com a mãe, Stella, que conheceu o também médico Emil Sabino em um banco de sague. Visto que medicina já predominava no DNA do casal, Ester não poderia ser outra coisa: “Fiquei até na dúvida de fazer matemática, mas parecia algo bem longe, então acabei fazendo medicina mesmo. Para mim, era fácil estudar, ia bem na escola.”

Só que Ester queria dar os seus próprios passos. Apesar da vocação pela medicina, a então universitária da USP se sentia mais atraída pelos laboratórios do que pelos consultórios ou salas cirúrgicas: "Mas é uma área difícil de se manter sozinha, principalmente no começo. A diferença de uma bolsa para o salário de um médico é muito grande."

A questão financeira pesou e Ester decidiu-se por concluir residência em pediatria. Atendeu e fez plantões em hospitais, conciliando com os estudos de mestrado e doutorado na USP. Apenas em 2011 conquistou a oportunidade de se dedicar integralmente às pesquisas, depois de ser aprovada num concurso para professora titular na faculdade de medicina onde entrou, como aluna, ainda nos anos 1980. Passavam-se então 15 anos desde que recebera o diploma de médica: “Isso é ruim, porque a fase melhor para a pesquisa é quando se está jovem. Essa falta de oportunidade de ser pesquisador no início da carreira complica um pouco o avanço dos trabalhos no País.”

Chagas é maior desafio

O convite para trabalhar com o sequenciamento do novo coronavírus chegou de forma abrupta, como a própria eclosão da pandemia. Mas Ester e sua equipe já estavam preparados. Desde 2012, o grupo do IMT-USP vinha desenvolvendo o método de identificação de genomas virais, inicialmente durante o surto da dengue naquele ano e, depois, na epidemia do zika vírus em 2016. “Mas, no caso do zika, só conseguimos concluir o sequenciamento quando a epidemia havia acabado. Então, o nosso foco foi melhorar esse timing, para conseguir trazer resultados mais cedo”, afirma.

Mesmo com todo o impacto da Covid-19, a imunologista não considera este o maior desafio de sua carreira. Há anos se dedicando ao estudo da Doença de Chagas, ela diz que a doença, que vitima cerca de 6 mil pessoas por ano Brasil, ainda tem muito mais a ser descoberta do que o vírus encontrado há menos de um ano em Wuhan, na China.

“É uma doença muito negligenciada no Brasil. É difícil ter recurso e foco. É impressionante o que falta fazer”, revela Ester, que no momento é uma das coordenadoras de um projeto de desenvolvimento de biomarcadores para Chagas, que está sendo feito em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Montes Claros.

Sua vida profissional, aliás, tem sido ainda mais intensa desde que começou a vivenciar o que chama de “atemporalidade da pandemia”. Além do trabalho sobre Chagas, coordena o sequenciamento do genoma de três mil pacientes de Anemia Falciforme e ainda lidera um estudo de prevalência do novo coronavírus com base em amostras de bancos de sangue.

Foi nesta oportunidade, inclusive, que Ester chegou a cogitar, em setembro, a possibilidade de Manaus ter adquirido imunidade de rebanho contra a Covid-19. Porém, o novo aumento de casos na capital amazonense logo no mês seguinte acabaria afastando a tese. "As análises do banco de sangue haviam mostrado uma prevalência de 66% de contaminados, que é o valor teórico para a imunidade de rebanho para um vírus com essa característica. É um conceito teórico, não quer dizer que a epidemia acaba."

Ester acrescenta que outras capitais, como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, também apresentam índices próximos. Mas o País, no geral, ainda estaria longe da taxa necessária para a imunidade. "Outro problema é saber se eles irão se reinfectar. Pois no momento em que isso acontece, não se pode mais falar em imunidade rebanho", afirma.

Por isso, ela reforça a necessidade da adesão total à vacina, assim que ela estiver disponível, como a melhor forma de se controlar a doença no País. Ela, inclusive, se mostra bastante otimista com a possível eficácia da imunização: “A menor dificuldade dessa vacina é o fato de o coronavírus não ser tão diverso, algo que não acontece, por exemplo, com a Hepatite C e com o HIV. Se os seus efeitos vão durar ou não, isso vamos ter que esperar. Mas sou muito otimista, porque a vacina bem funcionou em modelos animais e não há motivos para achar que ela não irá funcionar.”

A esperança de Ester é que, em breve, possa retomar o dia a dia no laboratório, já que desde março tem se protegido em casa, de onde coordena os trabalhos em frente ao computador. Também, quem sabe, aproveitar um pouco mais a fama repentina que ganhou. “As pessoas não reconheceram muito [após o sequenciamento], mesmo porque quase não saio de casa, e quando saio, é de máscara. Mas tem bastante convite legal chegando, para eventos, palestras e tenho tentado atender sempre que posso”, completa.

(Fonte: Agência Einstein)