Claudio Conceição: o exemplo de Catarina

Especialista faz uma reflexão em cima da relutância à vacina contra a covid-19 com uma passagem na história mundial, nos tempos da czarina russa Catarina, a Grande.

Claudio Conceição IBRE/Divulga
Claudio Conceição, superintendente de Publicações e Editor da revista Conjuntura Econômica na FGV. (Foto; Divulgação/FGV IBRE)

Ao acompanhar o processo de vacinação no mundo, com casos de rejeição à vacina, e as declarações e ações contra o isolamento social e medidas de precaução, me veio à mente Catarina, a Grande, a czarina que governou com mão de ferro a Rússia por mais de 34 anos. Em 1768, a varíola que grassava pela Europa chegou às portas de Catarina, uma princesa alemã, de nome Sofia, que havia se casado com Pedro III, que reinou por seis meses, até ser deposto e preso pela própria esposa, que assumiu o trono. Com medo – por si, pelo filho Paulo e pela nação –, a imperatriz pediu para investigar uma vacina, ainda coberta de muita controvérsia, desenvolvida através de material retirado das pústulas de varíola de pacientes em recuperação de casos leves.

Thomas Jefferson, presidente norte-americano, já havia sido vacinado em 1766, com o imunizante aprimorado por Thomas Dimsdale, um médico escocês, então com 57 anos,  formado pela Universidade de Edimburgo. Apesar da grande pressão para que Catarina não se vacinasse, em 12 de outubro de 1768 ela recebeu a vacina nos dois braços, com material retirado de Alexander Markov, um menino camponês que acabou, mais tarde, recebendo um título de nobreza.

Algum tempo depois, nobres e outras pessoas seguiram o exemplo de Catarina. Na época, “a atitude dominante com relação à doença era fatalista. As pessoas acreditavam que, mais cedo ou mais tarde, todos teriam varíola e que alguns iriam sobreviver e outros, morrer”, como escreveu Robert K. Massie em seu livro “Catarina, a grande: um retrato de mulher”. Pensamento que faz parte de declarações e ações do atual governo mais de 240 anos depois.

Outro fato ocorrido a partir de 1771 é espelho do que essa pandemia da COVID-19 marcou no posicionamento de muitas pessoas: o surto da peste bubônica que começou a devastar a Europa, chegando à Rússia. Já naquela época, Catarina determinou o que muitos continuam criticando ferozmente: medidas de quarentena, com suspensão de bailes – ocorriam muitos naquela época na Corte –, teatros, aglomerações públicas e cumprimento das determinações médicas.

Em seu livro, Massie relata que “a imposição de precauções médicas resultou em tumulto na população russa. Muitos passaram a crer que os médicos e seus remédios é que tinham trazido a peste à cidade. Recusavam-se a obedecer às proibições de se reunir em mercados e igrejas, e de beijar ícones supostamente milagrosos na esperança de ter proteção”. Não dá para não deixar de associar isso ao que acontece por aqui, com a pressão pela reabertura de igrejas, especialmente evangélicas.

Extremamente devoto, o povo russo se reunia nas igrejas em busca de consolo e salvação. “Uma famosa imagem da Virgem, no Portão de Varvarsky, era um verdadeiro ímã. Dia após dia, uma multidão de doentes se amontoava a seus pés. Ela se tornou o mais mortífero centro de contágio em Moscou”, relata Messie. Retirada, sorrateiramente, em uma noite pelo arcebipso de Moscou, como forma de reduzir a propagação da peste, gerou um motim. A multidão, enfurecida, arrastou o arcebispo para fora da igreja e o fez em pedaços. Catarina manteve a quarentena ao longo da fronteira sul da Rússia até 1774, quando terminou a guerra contra a Turquia. Na gripe espanhola, que matou mais de 50 milhões de pessoas, já se usava máscara, luvas e distanciamento social.

E pegando de carona a frase de Antoine Laurent Lavoisier, químico francês, de que nada se cria, tudo se transforma, a experiência devia nos servir de exemplo. Ou, como propalava Chacrinha, nada se cria, tudo se copia.

 

Retrato de Catarina, a Grande
Imperatriz da Rússia comandou a nação durante a pandemia de varíola, no período do século XVIII. (Foto: Reprodução)

******

A relutância em se vacinar é um enorme problema que o presidente Joe Biden está tentando reverter. Uma edição primorosa do The New York Times da última terça-feira (21), traça um perfil da imunização nos Estados Unidos, onde o número de novos casos e mortes voltou a subir, depois de uma forte queda em junho. Cerca de 212,3 milhões de norte-americanos já receberam uma primeira dose da vacina, incluindo cerca de 182 milhões de pessoas que foram totalmente vacinadas, o que representa perto de 76,6% dos adultos com pelo menos uma injeção. Apesar desses números robustos, o presidente Biden havia estabelecido em 4 de maio que até julho 70% da população receberia pelo menos uma dose, o que só ocorreu um mês e meio depois.

Mas qual a razão de uma parte dos norte-americanos não querer se vacinar? Existem muitas razões, segundo o jornal. Algumas pessoas são inflexíveis com relação à vacina, enquanto outras estão abertas à imunização, mas querem aguardar mais um pouco antes de dar o seu braço para um técnico aplicar o imunizante.

Diz a reportagem do jornal: “o primeiro grupo, como mostram as pesquisas, tende a ser desproporcionalmente branco, rural, cristão evangélico e politicamente conservador. O segundo grupo tende a ser  mais diversificado e urbano, incluindo muito mais jovens, negros, democratas e latino-americanos. Em regiões onde a maioria dos moradores votou para reeleger Donald Trump em 2020, é maior a rejeição à vacina”.

Uma pergunta que o jornal coloca e tenta responder é se nos condados mais vulneráveis à contaminação a população está sendo vacinada. A resposta é que, embora o governo Biden tenha implantado uma estratégia de distribuir vacinas e fazer campanhas nessas regiões, “muitos meses após a implantação desse plano, a maioria dos condados mais desfavorecidos, com menos pessoas totalmente vacinadas estão no Sul, enquanto as mais vacinadas, estão no Centro-Oeste e no Nordeste “.

Ou seja: com a variante Delta, o desafio da atual administração norte-americana de convencer as pessoas a se vacinarem continua. O ritmo de vacinação por lá, que atingiu um pico em abril com mais de 3 milhões de doses aplicadas em um dia, começou a cair, levando a uma média diária de 761 mil doses aplicadas em setembro.

Vacinação nos Estados Unidos
(doses aplicadas)


Fonte: The New York Times.

No Brasil, embora não haja nenhum movimento, como nos Estados Unidos, para incentivar as pessoas a se imunizarem – não há campanha, o presidente não se vacinou, continua não usando máscara e fazendo aglomerações –, a vacinação ganhou maior tração de dois meses para cá. E mais de 85% da população quer se vacinar, segundo pesquisas. Pouco mais de 40% dos brasileiros estão totalmente imunizados, enquanto estamos chegando perto de 70% da população que tomou, pelo menos, uma dose.

Diariamente, estão sendo aplicadas, em média, mais de 1 milhão de vacinas. Embora o ministro da Saúde Marcelo Queiroga, em quarentena nos Estados Unidos por ter testado positivo para a COVID-19, tenha afirmado que até o mês que vem toda a população estaria imunizada, em seu discurso nas Nações Unidas o presidente Bolsonaro jogou essa data para novembro. Mas estamos no bom caminho, com uma parcela pequena da população ainda contra a vacina, ante uma grande maioria favorável. E isso é que importa.

Vacinação no Brasil – 2021
(porcentagem da população)


Fonte: Ministério da Saúde.

Agradeço ao Armando Castelar, pesquisador-associado do FGV IBRE, a inestimável ajuda para esse texto na parte relacionada à reportagem do The New York Times.

Fonte: FGV IBRE