Hidrogênio de baixo carbono só será disruptivo no Brasil se incluir o mercado doméstico, afirmam especialistas

Atores do setor defendem celeridade na elaboração do marco legal e regulatório e a definição de um modelo de negócios para essa indústria no Brasil.

portalEspecialistas defendem a transição de matriz para renovável como a atração de multinacionais para limpar sua matriz produzindo no Brasil. (Foto: Divulgação)

Atores do setor defendem celeridade na elaboração do marco legal e regulatório e a definição de um modelo de negócios para essa indústria no Brasil, indicando que seu poder disruptivo só será totalmente aproveitado se incluir o aproveitamento local. “Projetos voltados à exportação podem ser importantes regionalmente, mas é o mercado doméstico que fará a diferença”, afirmou Luiz Antonio Mello, diretor de vendas da Thyssenkrupp Uhde Brasil, fabricante de eletrolisadores. Isso implica não só a adesão da indústria local a uma transição de matriz para renovável como a atração de multinacionais para limpar sua matriz produzindo no Brasil – estratégia cunhada pela CAF de powershoring, tratada na Conjuntura Econômica de setembro (leia aqui).

Projeções destacadas na publicação da FGV Energia apontam que até 2050 a participação do hidrogênio (H2) na matriz global poderá crescer dos atuais 2% para 5% a até 22%, com a ampliação sendo dominada pelo hidrogênio de baixo carbono, popularmente chamado de hidrogênio verde.

“O cenário mais conservador, de 5% em 2050, equivale a uma produção de aproximadamente 240 milhões de toneladas/ano de H2, cuja demanda é dominada pelo setor industrial (60%), seguida dos transportes (20%) e de edificações residenciais e comerciais (14%)”, descreve Alex Imperial, vice-presidente da DNV Energy Systems. Ele ainda destaca que, nesse cenário, 72% do H2 será produzido a partir de eletricidade gerada de fontes renováveis, seja em projetos dedicados a hubs de hidrogênio verde ou alimentados pela rede. “São investimentos que, até 2050, podem somar US$ 180 bilhões apenas em dutos, sejam novos ou reaproveitados, e US$ 530 bilhões na construção e operação de terminais de amônia – conversão necessária para a exportação do H2 de baixo carbono. São números estratosféricos”, ilustra Imperial.

“Quando analisado por regiões, observa-se que o Cone Sul – Argentina, Chile e Brasil – lidera a demanda por exportação. Mas isso não virá de graça: é preciso endereçar várias questões estruturantes”, apontou João Azevedo, da FGV Energia.

Entre elas, o pesquisador apontou a necessidade da definição do arcabouço legal e regulatório, bem como e a infraestrutura, que envolve do transporte do H2 de baixo carbono à oferta segura de água e muita energia elétrica de fonte renovável. Um exemplo dessa magnitude é a do projeto da Unigel, companhia de petroquímicos e fertilizantes, na Bahia.

“Escalonamos o projeto em três fases, sendo a primeira para produção de 10 mil toneladas/ ano de H2 de baixo carbono, por eletrólise. Isso implica uma demanda de 65 MW de eletricidade. Mesmo sendo um projeto pequeno, já equivale ao consumo de uma cidade pequena. Para a segunda fase, demandaremos 240 MW, que já se equipara à demanda da cidade de Santos, no litoral paulista. Nenhum plano de aumento de consumo como esse acontece do dia para a noite”, comparou Jeferson dos Santos, gerente executivo de Engenharia e Desenvolvimento da Unigel.

“O que vemos acontecer em diversos países é o desenvolvimento dessa infraestrutura na forma de dois tipos de hub, um mais centralizado, geralmente envolvendo portos e vocação para exportação, e outros descentralizados, instalados nas regiões centrais, mais voltados à demanda interna”, descreveu Azevedo.

O mesmo vem se desenhando no Brasil, como projetos como o do Porto do Pecém (CE) e Suape (PE) mais voltado às exportações, e outros como o de São Paulo, em que se espera a produção de H2 a partir da biomassa de etanol e outros resíduos agropecuários para abastecer a demanda local. Outra questão estruturante apontada por Azevedo é a de financiamentos e incentivos.

“Grandes iniciativas em países desenvolvidos já deslocam investidores”, disse. As principais, o (Inflation Reduction Act - IRA) nos Estados Unidos e o Banco Europeu do Hidrogênio, na Europa, oferecem o financiamento, respectivamente de até US$ 3 dólares e 4,5 euros por quilo de hidrogênio. “Como estamos envolvidos no desenvolvimento de projetos para potenciais clientes, já vimos dois grandes que pretendiam investir no Brasil migrarem para os EUA. É desafiador”, disse Mello, da Thyssenkrupp.

Esse cenário leva a dois desafios para o Brasil. O primeiro é conseguir competir por esse subsídio, especialmente o europeu, exportando para o continente. “O mecanismo do H2Global europeu é inovador. Compara-se o preço que o comprado está disposto a arcar pelo H2 e o preço que o ofertante consegue oferecer para manter seu projeto em pé, e o H2Global financia a diferença para alavancar projetos”, descreve Azevedo.

“Para aceder a esses incentivos, entretanto, uma questão estruturante que o Brasil tem que garantir é a certificação. No caso dos EUA, ainda falta a definição de requisitos e critérios. Mas as regras do jogo para mercado europeu já estão postas”, afirmou. Rodolfo Aiex, gerente na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) – que recentemente lançou dois certificados, para a EDP no Porto de Pecém e Furnas Itumbiara, ambos dentro do regramento europeu para mercado voluntário – o atual desafio da certificação é sua adequação com os requisitos pedidos pelos europeus. “Há critérios adequados para a realidade europeia – como o de adicionalidade – que não faz sentido tropicalizar, pois somos um país continental com realidades diferentes”, citou.

O segundo desafio é ter sua estrutura definida, inclusive de incentivos, para garantir uma fatia desses investimentos que ainda serão definidos.

“Não acho, por exemplo, que o que o IRA signifique uma perda definitiva para Brasil. Ele garantiu a captura de um primeiro lote de projetos, mas queira ou não os EUA não têm o mesmo potencial de geração de energia renovável. Mas para vermos empresas confirmarem projetos aqui, temos que ter claro o marco legal e regulatório”, afirmou, lembrando que, apesar da euforia diante de muitos memorandos de entendimento assinados no Brasil, a distância ainda é grande para que esses se convertam em obra de fato. “Todos os projetos que conhecemos são sérios, e não é pouco o que se investe em estudos de viabilidade. Mas essa primeira fase de maturação representa uma fração pequena, cerca de 3%, do investimento total”, afirmou.

Para Mello, um dos aspectos importantes é garantir a simplificação do marco legal, deixando questões técnicas para serem ajustadas no campo infralegal.

“Vemos que essas questões estão em andamento, e o importante é que tenhamos uma definição. Pode ser melhor ou pior para empresas que pretendem investir, no sentido ter mais ou menos incentivos. Mas, estabelecida a regra do jogo, as empresas que hoje aguardam poderão recalcular seu investimento em função da realidade e seguir adiante caso considerem viável.” Marina Abelha, superintendente de Licitação da Agência Nacional do de Petróleo e Gás, afirmou que as discussões para o arcabouço normativo do hidrogênio estão se acelerando.

“Estou otimista com o processo. Por outro lado, sou cautelosa com a organização que a discussão está tomando. Vemos diversos projetos de lei sendo encaminhados ao mesmo tempo, com temas sobrepostos e em direções opostas, o que amplia a incerteza quando o foco tem de ser estabelecer os marcos mais gerais”, afirmou.

Frederico Freitas, diretor da H2Verde, colaborador na elaboração do caderno da FGV Energia, também ressaltou a importância de se definir um modelo de negócios para essa indústria no Brasil, reforçando a mensagem de Mello sobre a importância de pensar o mercado interno.

“A alternativa de exportar não exclui as demais. Mas vamos querer ser apenas exportadores de mais uma commodity ou pensaremos em agregar valor, usando essa molécula para produzir manufaturas de baixo carbono no Brasil?”, questionou, citando diversos setores intensivos em energia nos quais a descarbonização é mais difícil, que vão do aço ao fertilizante, incluindo cerâmica e vidro.

“Cada cadeia produtiva tem suas particularidades que precisam ser observadas e discutidas, tanto do ponto de incentivo processo de reindustrialização sustentável quando processo de regulamentação.” Freitas também destacou a importância de se pensar estrategicamente a exploração e uso de minerais críticos para a transição energética. “Já perdemos a chance de dominar a tecnologia de silício cristalino para a produção e módulos fotovoltaicos e nos tornamos importadores. Precisamos aprender a lição.”

Daniel Lamassa, subsecretário da Secretaria Estadual de Energia e Economia do Mar do Rio de Janeiro, expressou otimismo no evento com os planos que estão sendo discutidos para o Porto do Açu. “Como estado que é o maior produtor de petróleo e gás, temos uma cadeia sólida de know how, infraestrutura portuária, e uma mão de obra especializada que será importante para o desenvolvimento das energias renováveis”, afirmou. “Diferentemente do caso do Nordeste, onde se busca explorar mais a exportação, aqui nossa ideia é usar essa sinergia para internalizar o H2 de baixo carbono, ou exportar manufaturados como aço verde, com menor pegada de carbono”, citou.