José Julio Senna, FGV: 'Com a inflação de bens praticamente zerada, daqui para frente não será possível esperar contribuição importante nesse campo'

Campo fiscal é visto como fonte de preocupação tanto no Brasil quanto nas principais economias, por especialistas.

josejulioJosé Julio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV IBRE. (Foto: Divulgação)

O último Seminário de Análise Conjuntural de 2023, evento trimestral promovido pelo FGV IBRE em parceria o Estadão, apontou que as expectativas dos pesquisadores do IBRE são de um 2024 repleto de pontos de tensão. Apesar do importante alívio que o arrefecimento da inflação no mundo tem trazido, o campo fiscal é fonte de preocupação tanto no Brasil quanto nas principais economias, que ainda têm de equilibrar um momento geopolítico não trivial.

No evento, moderado pelo repórter do Estadão Luiz Gerbelli, os pesquisadores do IBRE destacaram recente evolução mais favorável do cenário internacional, que pode favorecer as condições financeiras no Brasil para impulsionar a atividade econômica. “A desinflação de fato está ocorrendo lá fora”, afirmou José Julio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV IBRE, indicando que esse processo é fruto da reversão dos choques observados desde a pandemia, bem como da ação dos bancos centrais “menos pelo canal tradicional de desaceleração da atividade e geração de desemprego, e mais pelo impacto da política monetária sobre expectativas de inflação e preços de commodities”.

Senna alertou, entretanto, que essa tendência positiva não significa que o trabalho esteja concluído. “Com a inflação de bens praticamente zerada, daqui para frente não será possível esperar contribuição importante nesse campo”, disse, concentrando o trabalho no segmento de serviços.

“No Estados Unidos, quando trabalhamos com a inflação na ponta, usando uma média trimestral anualizada, vemos que o núcleo de serviços ainda está acima da meta, em 3,5%, e o chamado supercore, perto de 5%”, afirmou, reforçando a mensagem de que o FED, banco central americano, ainda tem trabalho adiante. “Já vimos que elevar mais a taxa básica não vai funcionar. O mecanismo que existe para o FED agora é dar sinais mais explícitos sobre o momento da queda”, indicou Senna, sinalizando a necessidade de extensão do horizonte de corte.

E é nesse ponto que mora uma preocupação: o descompasso entre as expectativas do mercado, consideradas por Senna excessivamente otimistas, e a sinalização do BC para o horizonte de queda de juros em 2024. Enquanto o primeiro espera ao menos seis cortes da taxa básica de juros americana em 2024, o FED apontou a duas em sua última comunicação.

“Acho que não é papel do BC sinalizar diariamente o que está acontecendo com a curva de juros. Mas na reunião formal do comitê de política monetária americano (esta semana) é muito possível que o FED manifeste algum descontentamento com esse excesso de otimismo do mercado”, afirmou, destacando ainda a alta volatilidade apresentada pelos juros de longo prazo mais recentemente, que tampouco ajuda.

“O próprio BC americano tem enfatizado que a volatilidade dos juros longos não interessa; as condições financeiras têm que ficar apertadas em caráter minimamente permanente por algum tempo; e o crescimento da economia tem que ficar abaixo do potencial por algum período”, resumiu. O BC americano calcula o PIB potencial do país em 1,8%, percentual que tem sido largamente superado nos últimos cinco trimestres.

Senna avalia que, a julgar por esse cenário externo, o BC brasileiro terá condições de manter o ritmo de corte de 50 pontos da Selic. “Pelo andar da carruagem, acho que haverá condições de se ter ao menos três movimentos adicionais de 50 pontos até o final do primeiro trimestre de 2024”, disse, uma a mais do que o BC prevê até agora. “A partir daí, a incerteza ainda é grande.” O ex-diretor do BC ressaltou a importância de se saber até onde chegará o atual ciclo de afrouxamento monetário – lembrando que o presidente do BC Roberto Campos Neto e o diretor de Política Econômica Diogo Guillen sinalizaram a uma Selic terminal contracionista – que, para Senna, pode ser em torno de 10%, levando em conta um juro real neutro estimado em 4,5%.

Armando Castelar, pesquisador associado do FGV IBRE, reforçou essa análise de melhora das condições financeiras refletida no comportamento dos preços de ativos nos países emergentes, mas destacou que 2024 não está imune a fontes de tensão. Entre os fatores citados destaca-se o campo fiscal, com as especulações sobre um aumento do pacote de estímulo na China e o crescimento da dívida americana. “O déficit fiscal dos EUA é gigantesco, e não há vontade política de ajuste”, afirmou, lembrando ainda do alto grau de incerteza sobre as eleições nos EUA no ano que vem.

No Brasil, lembrou Castelar, o desafio do cenário fiscal também permanece, colocando à prova a credibilidade do novo arcabouço aprovado este ano pelo governo. “Já não havia expectativa de cumprimento da meta de primário – de zerar o déficit – mas agora o risco é de um resultado pior”, afirmou.

Além de questões como a volta da fórmula de reajuste do salário mínimo que permite aumentos reais, de forma cumulativa, em salários e benefícios previdenciários, Castelar também destacou que as eleições municipais, cujo resultado influencia a dinâmica eleitoral para 2026, especialmente para eleição de deputados federais, e devem gerar forte pressão política e complicar a vida da equipe econômica. Para o pesquisador associado do IBRE, alguns fatores têm ajudado para que a progressiva deterioração fiscal ainda não tenha rebatido nas expectativas.

“Um deles são as contas externas favoráveis, com um saldo de balança comercial recorde, déficit em conta corrente caindo, mitigando esse impacto”, disse, alertando para o horizonte do preço das commodities, cuja tendência de redução, ou ao menos estabilização, pode ajudar no combate à inflação, mas atrapalhará no campo das receitas e das contas externas. Outro elemento apontado por Castelar é o de que, observando a economia de outros emergentes como Turquia, Rússia e Argentina, “tem-se um concurso de feiura em que o Brasil ainda fica melhor”. Ele destaca, entretanto, que é preciso observar como a situação de cada país evolui.

Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do FGV IBRE, destacou no evento o papel do agronegócio para o crescimento acima do esperado em 2023, contribuindo para mais da metade do crescimento de 2,9% projetado para o ano (um aumento de 0,2 ponto percentual em relação ao Boletim Macro de novembro, graças especialmente à revisão pelo IBGE do PIB de 2021 e um resultado melhor que o esperado, ainda que negativo, para o agro no terceiro trimestre do ano). Uma dinâmica, lembrou, diferente da observada em 2022, quando basicamente 90% do resultado do PIB se deveu a atividades cíclicas, mais sensíveis à política monetária.

Este ano, apontou Silvia, os efeitos da política monetária foram sentidos, mas em menor grau e com impactos diferentes do que os modelos indicavam. “O consumo das famílias resistiu – ajudado pelo mercado de trabalho, a deflação de alimentos, que melhoraram o poder de compra das famílias, reajuste de salário dos servidores públicos – mas o investimento sofreu, somando quatro trimestres de queda”, alertou Silvia, ressaltando que no terceiro trimestre de 2023 os investimentos ficaram 7% abaixo do nível observado no terceiro trimestre de 2022.

“A expectativa para novembro é que a absorção de máquinas e equipamentos continua cedendo, dando um sinal negativo para o crescimento futuro”, disse, indicando que a projeção do FGV IBRE é de que o investimento registre queda de 1,7% em 2023.

Para 2024, Silvia sinalizou que o agro deverá ter um resultado estável ou mesmo negativo, dependendo de como as condições climáticas, em ano de El Niño, impactarem as safras. “Com isso, a contribuição do aro para o PIB, de cerca de 1,6 ponto percentual este ano, deverá cair para algo mais próximo de 0,4 ponto percentual em 2024”, afirmou, indicando uma projeção para o PIB de 2024 em torno de 1,2%.

“A dúvida é se, diante dessa desaceleração, o governo conterá o impulso de usar estímulos fiscais para dinamizar a economia, comprometendo o trabalho de combate à inflação e a disciplina fiscal”, alertou. “Este ano, já observamos um aumento de gastos de forma permanente sem garantir as receitas para financiá-lo”, lembrou Silvia.

Para Castelar, condições financeiras favoráveis proporcionadas pelo cenário externo poderão exercer como um arriscado endosso a uma política fiscal expansionista. Há uma pressão política não trivial, propostas de gastos que dão volta no arcabouço – como a de criar um incentivo de permanência de alunos no ensino médio fora do atual limite de despesas – que escreve um enredo preocupante”, apontou Castelar.

Silvia destacou os riscos de perda de credibilidade do novo arcabouço. “Mesmo que não seja uma desancoragem plena, essa perda vai cobrando seu preço, com juros elevados e mais risco de inflação”, afirmou, lembrando que os ganhos esperados com a alocação de recursos públicos em determinadas áreas – conhecido como multiplicador fiscal – é comprometido no caso desses gastos serem feitos às custas de desequilíbrio nas contas.

“Mesmo no campo do investimento, quando olhamos o papel do setor privado para a concretização das obras do Novo PAC (leia mais sobre o PAC na Conjuntura Econômica de novembro). “Juros altos inibem o financiamento desse investimento. E se o BNDES entrar para cobrir essa demanda em condições diferenciadas, isso terá impacto fiscal. Em períodos anteriores, foi mais fácil oferecer esse apoio porque tínhamos superávit primário. Assim, será mais complexo para o governo desta vez”, afirmou, destacando que o ideal é trabalhar para que as condições macroeconômicas permitam que os juros reais cedam.

“Também é preciso pensar que há setores com externalidades importantes – como o saneamento – que precisam do investimento público. Mas nossa fragilidade institucional em defesa do interesse difuso de toda a sociedade permite que o orçamento seja capturado, abrindo espaço a gastos ineficientes”, afirmou, defendendo a importância do trabalho de avaliação e monitoramento de políticas públicas coordenado pelo Ministério do Planejamento. Identificar políticas que não dão resultados para reforma-las ou substitui-las, diz, abrirá um importante espaço para se equacionar a demanda por gasto público.

“Se não avançarmos na disciplina fiscal, será difícil zerar o déficit primário, pois temos resistência a aumento de carga tributária”, diz, reforçando a importância desse esforço paralelo em melhorar a alocação dos recursos públicos – do direcionamento de emendas parlamentares à revisão de programas vigentes. “Se continuarmos gerando incentivos equivocados, piora-se o ambiente de negócios”, conclui.