Guilherme Tinoco, FGV IBRE: 'Quando vemos o governo cogitando mudar a meta recém-pactuada, questionamos o que acontecerá nos próximos anos'

O economista Guilherme Tinoco, especialista em contas públicas, analisa a agenda econômica do Brasil.

Guilherme Tinoco, pesquisador associado do FGV IBREGuilherme Tinoco, economista e pesquisador do FGV IBRE. (Foto: Divulgação)

O economista Guilherme Tinoco, especialista em contas públicas, traça uma panorâmica da agenda econômica brasileira. Confira a entrevista:

Como avalia a possível revisão da meta do déficit primário para 2024? Se confirmada, quais implicações poderá ter em termos de credibilidade do arcabouço?

Gostaria de começar com um breve retrospecto. Quando o governo novo foi empossado, já se sabia que o teto de gasto, instituído em 2016 pela Emenda Constitucional 95, não ia durar mais. O nível das despesas discricionárias como percentual do PIB já estava muito baixo, não tinha como continuar dessa forma. Também havia a questão da credibilidade. Depois de tantas mudanças, principalmente as do final de 2021, quando se alterou o cálculo do teto e adiou-se parte do pagamento de precatórios, aquilo de fato causou um problema sério de credibilidade. Então, estava claro que o teto não iria durar.

Quando veio a PEC da Transição, vários economistas de mercado já se mostravam confortáveis com um aumento de gastos em torno de R$ 100 bilhões em relação ao teto original. Mas esse aumento veio mais alto do que se esperava, de quase R$ 200 bilhões, e isso deu uma assustada. Passou-se então a esperar o anúncio do novo arcabouço fiscal que, quando veio, foi bem avaliado. Vejo pontos positivos nele, como a questão de a regra principal ser a regra de despesa. Mas como a despesa ia estar num patamar muito mais elevado em 2023, e a regra do arcabouço ainda permite ganhos reais todo ano, conforme o comportamento da receita, a trajetória fiscal foi ancorada com uma regra de superávit primário. O mercado recebeu bem, pois essa ancoragem do primário permitia, nas nossas simulações, ver uma estabilização da dívida no curto prazo. Se zerássemos o resultado primário em 2024, por exemplo, já seria muito positivo.

Chegando agora à pergunta, a possibilidade de revisão da meta de déficit para 2024 é um lado ruim, pois se trata de um pacto firmado pela nova equipe econômica há menos de seis meses. Era melhor ter colocado uma meta um pouco mais frouxa, mas que não fosse mexida menos de um ano depois, visando ao segundo ano do mandato. Vale lembrar que as consequências do não cumprimento demoram um pouco a acontecer, porque os gatilhos caso não se cumpra a meta – com o limite de gastos sendo reduzido de 70% para 50% da alta real da receita – são acionados para o ano seguinte.

Então, vejo essa possibilidade de alteração com preocupação, por ter sido uma meta pactuada há pouco tempo. Com um déficit maior, a gente demora um pouco mais a ver o equilíbrio fiscal em termos de balanço primário e estabilização de dívida. Vale destacar que, ao analisar a política fiscal e projetar as variáveis, já esperávamos que seria muito difícil cumprir a meta de primário para o ano que vem. Mas quando vemos o governo cogitando abandonar a meta recém-pactuada, também ficamos em dúvida, questionando o que vai acontecer nos anos subsequentes a 2024.

Qual sua avaliação sobre a reforma tributária como foi aprovada no Senado?

Essa reforma foi construída por pessoas muito sérias como Bernard Appy (atual secretário Extraordinário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda), com base em estudos do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), e vem sendo debatida há muitos anos. Estamos falando em alinhar a tributação do consumo às práticas modernas, por meio de um IVA, com base ampla, não cumulatividade plena e cobrança no destino. Acho que é natural que durante a tramitação ela vá perdendo força, ainda que tenha sido, talvez, de forma mais acentuada do que se esperava. Mas os especialistas que têm acompanhado mais diretamente essa tramitação ainda dão uma nota bem razoável para o texto aprovado no Senado. Acho pouco provável que, na volta à Câmara, haja reversão das alterações que a enfraqueceram. Mas ela ainda é importante para substituir um sistema que é hoje é totalmente obsoleto. Estive em uma Secretaria da Fazenda (como assessor especial da Secretaria do Estado de São Paulo, 2019-2023), e vi de perto a loucura que é o ICMS. Quando assessorei diretamente o secretário Henrique Meirelles, lembro-me que a maioria das reuniões que acompanhei era para tratar de assuntos tributários. Era uma perda enorme de energia tratando de exceções, regimes especiais, que é o que a reforma quer mitigar.

Este ano, o crescimento do PIB brasileiro foi impulsionado pelo setor agropecuário, em especial, pela exportação de commodities agrícolas. Esse resultado é ilustrativo de uma mudança de função de produção no Brasil, em particular na última década, em que a indústria tem perda significativa de participação. Como pensar em ampliar o potencial de crescimento diante desse aumento da dependência do agronegócio?

É uma pergunta de milhão de dólares. No médio e longo prazo, ainda é difícil vislumbrar. O que a gente tem de referência é que, pelo lado demográfico, não contaremos mais muita ajuda. Do lado do investimento, do qual já falamos um pouco, também sabemos que há imensos desafios. Por exemplo, este ano a economia vai crescer 3%, e a formação bruta de capital fixo vai cair (a projeção do FGV IBRE é de queda de -1%). Temos ainda a produtividade, sobre a qual hoje discutimos o impacto das reformas dos últimos anos, o quanto elas ampliaram a produtividade ou não, se estamos colhendo algum impacto. Pensando nessa abordagem da função de produção, como a gente vai fazer pra estimular o investimento e a produtividade?

A reforma tributária pode ser um componente para ajudar na produtividade, bem como na parte do investimento. Talvez as tendências globais de busca por uma matriz produtiva mais limpa podem colocar o Brasil como receptor de mais investimento estrangeiro. É uma oportunidade para a América Latina como um todo, mas especialmente para o Brasil, que já tem uma matriz energética predominantemente limpa, e boas perspectivas para o hidrogênio verde (leia mais sobre oportunidades brasileiras na transição global energética na Conjuntura Econômica de setembro) . Então, saber se colocar nessa nossa nova organização da produção mundial pode ser uma saída para o país no médio prazo.

Se pensar no curto prazo, aí entra a discussão sobre os fatores de caráter um pouco excepcionais que colaboraram para o crescimento este ano que não se repetirão no ano que vem. A começar pelo próprio impulso fiscal deste ano, com um gasto que aumentou muito em relação a 2022. Estamos com um delta de 8% de crescimento real da despesa. Saímos de superávit do governo central de 0,5% em 2022 para um déficit que deve ser de 1,3%, de mais ou menos R$ 140 bilhões. Isso, no curto prazo, é impulso fiscal. No ano que vem, reduzindo o déficit primário, o fiscal passará a contribuir menos. Para o curto prazo, isso é ruim, mas para o longo prazo é um canal de melhora das condições financeiras.

Há também o restante da poupança acumulada pelas famílias durante a pandemia. É difícil estimar de quanto é esse excedente de poupança, mas há sinais de que este ano ainda contamos com essa contribuição. Se houver alguma margem para o ano que vem, será certamente menor do que a de 2023. E, no campo das exportações, as expectativas são de desaceleração de preços de commodities e também de volume, com a desaceleração da economia mundial. A própria variação da produção agropecuária, ainda que continue em um nível parecido ao deste ano, que foi excepcional, não terá o mesmo efeito em termos de contribuição ao crescimento.

De onde poderiam chegar surpresas positivas para 2024?

Tem alguns fatores que podem ajudar. Não são muitos, nem com potencial tão significativo, mas existem. Na parte do consumo, temos dois. Ainda estamos buscando entender melhor o impacto do Desenrola. O dado principal, por enquanto, é de que o grupo de famílias da faixa 1 envolve uma dívida de R$ 150 bilhões que está sendo negociada com descontos que podem superar 80%. Ou seja, um desconto potencial de R$ 125 bilhões. O que tivemos de informação preliminar é que as pessoas estão negociando em parcelas mais curtas. Isso significa que daqui poucos meses cerca de 70 milhões de pessoas poderão voltar plenamente ao mercado de crédito. É muita coisa, e isso pode significar alguma contribuição. O segundo elemento no campo do consumo é o mercado de trabalho. Considero que ainda tem espaço para crescimento da população ocupada, mesmo que a taxa de participação permaneça mais baixa do que o observado no pré-pandemia. Fizemos um exercício de manter constante a taxa de desemprego, ou em um nível um pouco acima da atual, com 8% a 8,2% na média do ano. Levando em conta que esperamos um crescimento da população ocupada em torno de 1%, mantendo o salário real parado nos últimos valores observados, isso significa um aumento real de massa salarial em torno de 1,5%, o que também pode dar fôlego para o consumo. Mas se trata apenas de exercícios, para mostrar que o mercado de trabalho ainda tem um fôlego para dar à massa de renda.

De qualquer forma, não são muitos os fatores que vislumbramos hoje. A maioria dos analistas com os quais converso está um pouco mais pessimista para o ano que vem. No campo do investimento, os desafios são maiores, porque normalmente o investimento não cresce quando a economia desacelera. Mas torcemos para que a base de comparação mais baixa, por conta do desempenho em 2023, e outros fatores tais como o investimento estrangeiro ajudem a empurrá-lo em 2024.